A melancolia não combina com Janeiro abaixo da linha do equador. Em seu livro “Saturno nos Trópicos” Moacyr Scliar escreveu, referindo-se ao famoso personagem Sancho Pança, parceiro inseparável de D. Quixote na obra de Miguel de Cervantes: “Não é melancólico como Quixote, nem sanguíneo, o que os colocaria em conflituosa oposição: Júpiter contra Saturno.” Scliar reflete, em trecho do livro dedicado ao período do Renascimento na Europa, sobre o chamado “mal dos livros”; Quixote paga caro por ler romances de cavalaria demais e, segundo o autor, seu companheiro é personagem imprescindível para que o cavaleiro andante não se afunde na soturnidade, afinal “por que razão todos os que foram homens de exceção no que concerne à filosofia à poesia ou às artes são manifestamente melancólicos?”, perguntou Aristóteles.
E eu pergunto: é possível ser melancólico no calor? No temporal? Nos dias de sol escaldante e chuvas torrenciais?
Scliar escreveu sobre como os europeus trouxeram a peste e a misantropia a bordo dos navios colonizadores. Sobre como a sisudez e as doenças europeias contaminaram nosso verão de ano inteiro. Lembro-me de Caetano: “Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provado que só é possível filosofar em alemão.” E, deixando de lado a filosofia, tenho uma pequena e humilde teoria que nunca será profundamente explorada: a culpa do Saturno nos trópicos é dos astrólogos.
Escrevo essa coluna no dia seis de janeiro – data que marca a conhecida festa católica, popular e folclórica chamada “Dia de Reis” – e que rememora e celebra a jornada dos Reis Magos, desde o momento em que eles recebem o aviso do nascimento do Messias, até a hora em que encontram o Deus-menino na manjedoura. Há muitos séculos, a igreja católica incorporou muitos símbolos e ritos da astrologia. Como se sabe, os três reis magos seguiram a estrela guia até Jesus e fizeram isso porque eram exímios conhecedores dos mapas estelares, sábios estudiosos do céu e dos movimentos dos astros. Por esse motivo, o sexto dia de cada ano também comemora o dia mundial do astrólogo, em homenagem aos mesmos Reis Magos – Belchior, Baltazar e Gaspar. O respeito pelos astrólogos remonta a milênios, quando reis e imperadores recorriam aos conhecimentos e métodos astrológicos para melhor planejarem suas vidas, ações e conquistas.
Não existe astrologia a partir do hemisfério sul do globo terrestre. Assim como a fé católica chegou até nós através da colonização a astrologia também percorreu o mesmo caminho.
Organizados de maneira a refletir a mudança das estações do ano, os signos do zodíaco espelham o céu e a natureza a partir da observação daqueles que viviam acima da linha do equador. Consequência disso é que temos o signo de Capricórnio, diretamente relacionado ao inverno, à noite e a introspecção e regido pelo planeta Saturno, deus romano do tempo, das sombras, das limitações e, veja só, símbolo da melancolia e do envelhecimento, como o signo daqueles que nascem em pleno verão tropical. É a mesma lógica de celebrarmos o Natal com neve nas decorações e um Papai Noel vestindo pesadas roupas de inverno.
A Europa não só colonizou nossas terras, ela fez de nós, até hoje, europeus imaginários.
Em 1984, em uma terça-feira de janeiro, nasci sob o signo de Capricórnio – a cabra resiliente, soturna e sonhadora. Daqui a alguns dias, olharei para o céu de outra terça-feira – muito provavelmente quente e ensolarada – 39 anos depois do dia que cheguei ao mundo e poderei ver acima da linha do horizonte o último planeta do sistema solar que nos é visível a olho nu: seus anéis brilhantes e longínquos, exatamente como eram há milênios, quando encantavam os estudiosos entediados de olharem uns para os outros e que levantaram os olhos em direção às estrelas.
Saturno rege o verão astrológico do hemisfério sul desde que nos perdemos dos nossos povos originários e fomos obrigados a viver, entender e sonhar o mundo sob um ponto de vista que não nos pertence.
Quanto aos livros, a literatura, os dias ensolarados e a melancolia: Saturno era o Deus do tempo – o Cronos romano – e, talvez, a lição mais melancólica da vida seja entender que, em 2023, o tempo é um luxo e uma dádiva que poucas pessoas dispõem; para ler, para pensar, para contemplar. Nasci no verão e sou brutalmente saturnina, o que pode significar tudo ou nada. Na melancolia moderna e líquida, férias remuneradas em janeiro têm impacto maior e absoluto sobre o nosso humor. Desejo que, neste verão, todos os leitores – dos livros e do mundo – possam desfrutar do sol e de momentos de lazer, mas também de alguns dias de temperatura mais amena e convidativa à introspecção, à avaliação da vida e à elaboração de planos para o futuro.
Que 2023 seja instigante e recompensador, para todos nós.