Dizer que fui uma adolescente insegura é incorrer num pleonasmo. Todo adolescente é devastadoramente inseguro e absolutamente convencido de que transborda autoconfiança. Eu era as duas coisas. Na segunda metade da década de 90, o mundo era muito diferente. Em alguns aspectos, mudamos para melhor. Porém, nos idos de 1998, eu tinha 14 anos e me debatia com todas as agruras da idade quando, para agravar minha angústia juvenil, mudei de escola e me deparei com mais de 40 pares de olhos me fulminando quando adentrei a sala da 8° série V2 do Polivalente Coronel Borges. As aulas já haviam começado há dois meses, e eu tinha decidido mudar de escola, sabe-se lá o motivo, não me lembro mais.
Não sei se a má fama das turmas vespertinas ainda existe, mas quando eu era estudante, todos sabiam da comparação entre os turnos e como os alunos do período matutino eram conhecidos como “mais mansos” do que os que estudavam à tarde. Fato é que eu havia estudado a vida toda no período da manhã, e estava apavorada. Mais uma vez, como eu fui parar nessa situação por escolha própria é um mistério insondável. Tenho uma boa memória, mas esse detalhe se perdeu e acho que sei o motivo: bloqueei partes dessa lembrança como autodefesa.
Durei uma aula no turno da tarde. Não me recordo mais qual era a matéria. No entanto, nunca me esqueci que, naquele dia, a coordenadora me levou até a porta, apresentou-me para a professora – parecia recém formada e tinha pouco controle sobre a turma – e eu comecei a cruzar a sala, entre as fileiras de alunos, para me sentar numa das últimas cadeiras, as únicas que estavam vagas. Escolhi, para o primeiro dia na nova escola, uma roupa que eu gostava muito: saia jeans e uma blusa que eu mesma tinha tingido em tons de rosa e laranja. Levava comigo um caderno e um estojo de lápis. Mesmo apertando o material contra o corpo, o estojo escorregou e caiu no chão. Eu já estava tremendo de nervosismo, pois os comentários que tinham começado como cochichos já tinham crescido, e os alunos faziam piadas em alto e bom som. Abaixei-me, peguei o estojo e, quando me levantei, alguém às minhas costas gritou “dragão!” e todos estouraram numa gargalhada uníssona.
Minha lembrança da aula termina aí. Da continuação dessa tarde, só me recordo que, no primeiro intervalo, cheguei aos prantos à sala da coordenação e implorei para ser transferida para o matutino, o que de fato aconteceu. 1998 transcorreu de forma mais amena, fui muito feliz na 8° série M2 e guardo boas recordações da escola e dos amigos. Corta para 2024. Estou obcecada pela série A Casa do Dragão, da HBO e, assistindo a um dos episódios, de súbito, um voo rasante de Caraxes, meu dragão preferido da série, por causa de sua aparência insana e ameaçadora e o tom avermelhado de suas escamas, relembrou-me esse dia da minha vida. Não pude evitar um sorriso. 26 anos depois, por causa de uma série de TV, aquela agressão verbal se transformou, dentro de mim, em um elogio.
Na minha imaginação reparadora, eu me viro para o menino que me chamou de dragão (nunca soube quem foi) atiro caderno e estojo para o lado e, depois de um rugido ensurdecedor, ateio fogo à sala, às cadeiras e ao quadro, deixando-o sozinho no meio de um círculo em chamas, apavorado e com os cabelos fumegando. Aquela tarde de segunda-feira, em abril de 1998, se tornaria lendária e, até hoje, a história seria recontada. Ao final do corredor que não mais existe, uma nova e reforçada porta estaria sempre trancada, escondendo, dos olhos dos jovens estudantes, o teto desmoronado e as paredes enegrecidas pelas chamas e pelo tempo. Porém, os relatos não poderiam ser contidos, e a 8° série V2 do Polivalente Coronel Borges seria para sempre lembrada como A Sala do Dragão.