CHICÓ NA IMERSÃO ENOLITERÁRIA
E Chicó continuou:
Chicó: — Lembra da primeira cidade que cheguei, uma tal Marataízes, naquela que tinha um marzão que chamam de praia? Onde fui descansar no caminhão parado e, quando acordei, ele tinha mudado de lugar. E que foi nesse momento que descobri que dormi numa cidade e acordei em outra. Pois então, nesse mesmo momento, escutei alguém dizer que eu estava na terra do rei.
Aí, pra descomplicar, perguntei:
— Rei de quê?
E responderam:
— Rei da música.
Então pensei: Que esse negócio de ter me perdido foi bom. Assim, conheci a terra do Roberto Carlos. Isso que é sorte! Mas deixa eu terminar de contar o que vivi lá.
João Grilo: — Pois conte, Chicó. Estou doidinho pra saber como essa estória termina.
Chicó então se senta debaixo da palmeira e retoma de onde parou:
Chicó: — Então, como eu ia dizendo, o grande evento dos livros e vinhos foi chegando ao fim, em seu segundo episódio do Auto da Compadecida. Onde a religiosidade e o julgamento se deram no segundo ato que também foi o terceiro momento dessa imersão chamada enoliterária. Onde foi servido um vinho tinto de muita qualidade com um nome bem conhecido em nossa região. Que aliás é patrimônio cultural.
João Grilo: — Eita, o que você está dizendo, Chicó? Que estória é essa de vinho com nome de patrimônio cultural? Acho que o sol quente derreteu foi seus miolos da cabeça é tudo, viu!
Chicó: — Pare de dizer sandice, João! O sol pode estar quente, mas meus miolos estão no lugar e eu sei o que vi e ouvi e também o que bebi e comi. Você é que precisa estudar. Não saber o que é patrimônio cultural na própria cidade é burrice demais, João! Nem sei como ainda sou seu amigo. Você é muito atrasado!
João Grilo abaixa a cabeça e começa a se afastar, até que Chicó grita:
Chicó: — CORDEL! CORDEL!
Espantado, João Grilo deu um pulo e perguntou:
João Grilo: — O que é isso, Chicó, pra que essa gritaria?
E afobadamente, Chicó responde balançando as mãos:
Chicó: — Esse é o nome do vinho tinto, João, que Raquel serviu com escondidinho de carne seca. Fique você sabendo que a literatura de cordel é um patrimônio cultural muito importante do nosso nordeste. E este vinho é pra coroar nossa cultura nordestina.
João Grilo: — Agora que você explicou consigo entender. Por que não falou isso logo, ao invés de ficar fazendo volta?
Chicó: — Você me conhece, João. Eu gosto de contar as coisas assim como se deu. E às vezes esqueço que você não é viajado, assim como eu.
João Grilo: — Não precisa humilhar! Não é porque você conheceu um monte de lugar que é melhor que eu. Não sei por que ainda fico te perguntando as coisas. Eu vou-me embora, que é o melhor que faço.
Chicó: — Espere, João! Não quis lhe ofender, eu juro pela virgem santíssima. Você é meu melhor amigo. Até porque eu não tenho mais ninguém. Se você for embora pra quem vou contar minhas estórias?
João Grilo: — Já que me pediu desculpa vou ficar. Quero muito saber como foi o final dessa viagem na terra do rei e essa tal imersão enoliterária.
Nessa hora, João Grilo pergunta:
João Grilo: — E aí, Chicó, como terminou e o que você mais gostou?
Chicó: — Ah! Meu amigo, nessa vida são tantas as emoções que muitas se perdem no caminho. Alguns conseguem se arrepender a tempo da salvação, outros não. Mas vamos retornar lá pras bandas de Cachoeiro junto com Olívia e Raquel, mulheres apaixonadas pelas belezas da vida e que encontraram uma forma de celebrar as estórias da literatura com o requinte dos vinhos.
E aí Chicó deixou escapar:
Chicó: — Mas o melhor dessa estória eu deixei pro final.
João Grilo: — Eu sabia! É por isso que não fui embora, como falei que ia. Quero saber como essa estória termina. Conta Chicó! E acaba com a minha agonia.
Chicó: — Fique tranquilo, porque a estória termina com a intercessão de Nossa Senhora salvando nosso couro e nossa alma. E como todo perdão é doce, adivinha!
João Grilo: — Adivinha o quê, Chicó?
Chicó: — Raquel trouxe um vinho branco licoroso tão doce quanto o perdão recebido. E ainda veio acompanhado com um pudim de rapadura. O desfecho não poderia ser melhor.
E Chicó continua contando:
Chicó: — O vinho e o pudim de rapadura me deixaram inebriado e com tanta saudade de casa, que quando vi tinha subido na asa branca de Luiz Gonzaga e terminei na anunciação com Alceu Valença. E pasme, homem, foi assim que cheguei de volta nessa terrinha abençoada por Deus e Nossa Senhora. E aí, como bom amigo que sou, corri pra lhe contar que você é famoso no mundo todo, João! E como não poderia deixar de ser, nós caminhamos juntos nessa fama, nessas tramas criadas pelo saudoso Ariano.
João Grilo: — Ôxe, Chicó, antes você chamou o Ariano de fofoqueiro, porque saiu contando o que a gente fez pela cachorrinha da dona Dorinha. Agora fala que tem saudade. Como pode isso, Chicó?
Chicó: — Posso até ter falado dele em algum momento, mas de repente me dei conta que graças a ele ficamos famosos. Já que o mundo inteiro conhece nossa estória, mas ao mesmo tempo, me dei conta que a morte dele nos prendeu nesse auto. Somos eternos protagonistas dessa estória.
João Grilo: — Mas isso é ruim, Chicó?
Chicó: — Ôxe, largue mão de ser besta. Porque isso é bom demais! Todo mundo contando nossa estória é sinal que nunca seremos esquecidos. E só de pensar que em algum lugar tem gente lembrando da gente é sinal que ficamos importantes. E que mal pode haver nisso, homem? Considerando que enganamos o padeiro, o coronel, o sacristão, o padre e até o bispo e ainda ficamos vivos, sem faltar nenhum pedacinho, só mostra que somos cabras valentes. Dignos de serem lembrados.
João Grilo: — É, se tu tá dizendo, mas não esqueça que foi Nossa Senhora que nos libertou das mãos do diabo. E não se esqueça que tu prometeu parar de arrumar confusão com suas mentiras.
Chicó: — É verdade! Sou muito agradecido. Só não sei se vou conseguir cumprir a promessa.
João Grilo: — Ôxe, promessa é promessa. Não pode quebrar! Porque o castigo vem!
Tanto Chicó, quanto João Grilo olham pro céu e se benzem. E depois continuam com a estória de Chicó. João, que não se aguenta mais de curiosidade, cutuca Chicó.
João Grilo: — Agora me diga aí, Chicó, por que você queria que eu dissesse o dia pra você? Acaso tem a ver com essa experiência que você viveu lá pras bandas do Espírito Santo?
Chicó: — É sim, João. Mas a experiência foi tão boa que pra sempre vou guardar a data de 26 de outubro, o dia que encontrei Olívia e Raquel em sua segunda imersão enoliterária. Porque foi o dia que descobri que a nossa estória virou livro e é contada como o Auto da Compadecida. Achei isso arretado de bonito.
João Grilo: — Livro? E como tu sabes que virou livro?
Chicó: — Oxe, porque sei. E porque no final da experiência enoliterária teve um sorteio.
João Grilo: — Sorteio? Que novidade é essa agora, Chicó? Sorteio de quê?
Chicó: — Olhe, foi tu que perguntaste, eu nem ia falar.
João Grilo: — Mas Chicó, eu falei desde o começo que queria saber a estória toda e você tá me dizendo que não ia contar que teve sorteio? E por quê?
Chicó: — Porque eu sabia que você ia ficar com essa cara de bobo e quando descobrisse que o sorteado fui eu ia ficar vermelho de inveja.
João Grilo: — Ôxe, tá me chamando de invejoso é? Então me diga logo por que tu acha que eu ia ter inveja de tu? O que tinha nesse sorteio, Chicó?
Chicó: — Não sei se conto, do jeito que tu é não vai nem acreditar.
João Grilo: — Como assim? Que prêmio é esse, homem? Conte logo!
Chicó: — Vou contar é nada! Já que tu é meu amigo, vou é lhe mostrar. Porque só assim pra tu acreditar.
No momento seguinte, Chicó tira de dentro de sua bruaca o livro “O Auto da Compadecida” e entrega pra João Grilo dizendo:
Chicó: — Olhe você mesmo, João! Esse foi o prêmio que ganhei, nele conta tim tim por tim tim tudo que passamos com a morte da cachorra de dona Dorinha.
João Grilo arregala os olhos olhando fixamente para o livro e diz:
João Grilo: — Então é verdade! Nossa estória rendeu livro é. E como foi isso, Chicó?
Chicó: — Como foi não sei não. Só sei que foi!
Nesse instante, os amigos se abraçam, a felicidade é tanta que falam ao mesmo tempo:
João Grilo e Chicó: — Isso é bom demais! Viva a tal literatura!
Depois de pularem juntos abraçados, Chicó vai logo empurrando João, dizendo que esse negócio de ficar abraçando homem tá certo não. Que o melhor é se afastarem antes que o povo veja e comece a falar.
Instantes depois, enquanto caminham rumo à praça da cidade, João Grilo, inconformado, pergunta:
João Grilo: — Chicó, você contou um monte de coisa. No entanto, você não me disse do que gostou mais. Vais me dizer ou não?
É nesse momento que Chicó abre o coração e diz:
Chicó: — Ah, meu amigo! Pra ser bem sincero, eu gostei muito foi de tudo. Mas o que mais me encantou foi ver como a estória que se vive pode se tornar algo tão importante e caber dentro de um livro. E também descobri que a leitura é algo libertador, enriquece a alma e de vez em quando faz uma visita à consciência das pessoas. E que os vinhos foram só uma forma inteligente de mostrar que nessa vida nada é por acaso e que todas as coisas que existem no mundo de alguma forma estão conectadas.
João Grilo: — Nossa, Chicó, você é muito inteligente! Fico feliz de ser seu amigo, assim posso aprender com você a leitura do mundo.
Em suas aventuras, Chicó descobriu o poder da escrita e da leitura através da imersão enoliterária, onde as estórias são contadas carregadas de magia, aromas e sabores. Onde a criatividade abraça múltiplas formas de apresentação e representação, partindo da realidade ou da ficção tudo se entrelaça na emoção. E, de alguma forma, nos leva a refletir sobre o mundo ao nosso redor. Essa é a verdadeira essência da literatura.
E Viva a literatura!!
FIM