A linguagem da amizade não é de palavras, mas de significados. Henry D. Thoreau
Iniciamos o Ciclo Dois 2023 do Clube de Leitoras com o livro As Inseparáveis – escrito em 1954, cinco anos após a publicação de O segundo sexo, As inseparáveis é o romance autobiográfico que conta a história da amizade passional que uniu Sylvie (Simone de Beauvoir) e Andrée (Élisabeth Lacoin, a Zaza). Quase 70 anos depois a obra chega ao Brasil, publicado em outubro de 2020.
Envolto em especulações sobre a vida pessoal da filósofa, há quem mencione que a história inspirou os famosos livros da autora italiana Elena Ferrante, que em sua tetralogia conta a história de duas amigas que se conhecem nos bancos escolares, também no início do século 20. Ferrante narra, ao longo de quatro livros, a relação de suas protagonistas desde a infância até a maturidade. Na autobiografia ficcional de Simone de Beauvoir, sua melhor amiga morre com pouco mais de 20 anos de idade.
Quanto de Simone e de sua obra têm como nascente sua admiração por Zazá, a juventude compartilhada e sua devastadora e precoce morte? A amizade que construíram não está só nas muitas palavras que Beauvoir deixou escritas sobre a amiga, direta ou indiretamente. Em seu diário, as páginas referentes às datas do falecimento de Zazá e aos dias que se seguiram permaneceram em branco – o silêncio e a ausência de relatos também são sobre a amiga. Como na citação que abre esse artigo, é nos significados que repousa a intangibilidade dos afetos que experimentamos durante a vida.
Em uma linda e inesquecível passagem do livro, a adolescente Simone escreve uma carta para Élisabeth. Inspirada pela opulência da primavera, teceu um longo relato sobre a exuberância das cores, o aveludado das pétalas, o mosaico de azul, verde e luz que observava, abraçada ao cheiro de pólen e saudade. Pode-se dizer que a Primavera significa renovação, beleza, encanto, prosperidade ou o que quer que seja – desconectado das relações interpessoais, tais palavras exprimem, apenas, generalizações. É a busca em um dicionário – encontramos o que uma palavra significa, mas não o que ela é para nós, e para nós exclusivamente. Na carta relatada no livro, Simone não escreveu sobre a primavera, escreveu para aquela que era sua primavera, pois tudo que lhe encantava naquela estação só o fazia pois, primeiro, passava pela existência da ligação entre as duas.
É impossível descrever qualquer sentimento, são todos pessoais e intransferíveis. É olhando ao redor e atribuindo significados únicos ao que pertence à toda humanidade que criamos essa frágil redoma de singular valor e fragilidade. A amizade, como um eterno abracadabra, cria um mundo onde tudo existe na troca e, fora dessa esfera de encantamento, nada se explica ou perfuma, ou inflama. Expulsos dessa forma sublime de existir, nada mais faz sentido. Nada mais faz sentir.
Foi sobre essa ausência que Simone de Beauvoir escreveu durante toda sua vida. Novas e diferentes palavras sobre um sentimento que nunca saberemos o verdadeiro significado. A primavera que era Zazá não nos pertence. Inauguremos nós mesmos uma linguagem intransferível, inspirados por nossas próprias amizades e colorida de afetos irrepetíveis num eterno e pleno recriar e renomear. Afinal, qual é o nome da sua primavera?