Tenho o hábito de ler os comentários deixados em vídeos do YouTube. Não qualquer vídeo, principalmente os de clipes de músicas que eu gosto. Além dos clássicos “alguém assistindo em 2022?” (ou datas antigas) me interessam aqueles em que as pessoas relatam suas histórias pessoais e afetivas com aquela canção que também é importante para mim. “Mais uma vez aqui, essa letra me lembra meu pai”, “essa música me acalma e não preciso tomar remédios quando a escuto”, “perdi minha esposa para o Covid, era sua cantora preferida.” Passo horas nessa conversa distante e que não ouso responder. Disformes, desconectados e não planejados, os parágrafos se empilham e rolam pela tela do meu celular. Fragmentos de literatura bruta. Microcontos não intencionais. Marcas linguísticas cujos desvios garantem a veracidade e a beleza dos relatos. Universos inteiros que colidem e se estilhaçam e se perdem na imensidão da internet. Segundos de encantamento, aflição, conexão, cumplicidade e já não sou a mesma pessoa de segundos atrás. Meu mundo foi afetado, minhas memórias ativadas e remexidas.
Talvez, daqui a muitos anos, minhas sinapses cerebrais já estejam caducas e tomem como minhas muitas dessas passagens que li. Indivíduos, sim – somos nomeados daquilo que não pode ser dividido -, mas somos multiplicáveis, eleváveis, metamorfoseáveis a enésimas potências e potenciais.
O último livro do Clube de Leitoras passeia pelos desvios, rotas, atalhos e descaminhos de sermos quem somos. O que nos inspira é bonito de se contar. O que nos dá nojo não queremos dizer. O que nos envergonha e do que sentimos inveja tentamos – inutilmente – esconder, camuflar. Está tudo lá, ou melhor, aqui.
Bem dentro de nós. Aterrorizante pensar que um perfume inesquecível, um olhar de desprezo ou um filme que assistimos de mãos dadas e nunca esquecemos são impulsos elétricos percorrendo um órgão gelatinoso e frágil que pode se machucar com qualquer sacudida mais brusca ou pancada inesperada.
O mundo que habita em nós é inteiramente feito dos mundos que visitamos com nossa solitária, enviesada e soberana perspectiva. Como as galáxias que explodem sobre nossas cabeças, arremessando pedras e poeira por todo o universo, também somos, cada um de nós, pequenos fragmentos do cosmos – da ordem – mergulhados no caos dos encontros e desencontros, dos choques e do balé meteorológico, parte escuridão e parte luz.
Terminamos o ano de 2022 diferentes. O mundo mudou e nós o afetamos e fomos afetadas por ele. Por todos eles. Pelo mundo palpável e inquestionável – redondo e lerdo em suas rotação e translação inabaláveis, e pelos mundos que nos circundam e nos avizinham, todos os dias, o tempo todo.
Somos assustadoramente reais – todos os mundos que cabem nesse planeta. É intrigante quando nos encontramos. É perigoso quando nos chocamos. É bonito quando dançamos. Mas quando criamos, ah! Quando criamos, o mundo é um milagre.