Perdi meu corpo, 2019, disponível na Netflix, é uma animação que narra a história de vida de Naoufeul, um jovem que sonhava ser astronauta e pianista, quem gravava os sons ao seu redor como uma forma de captar uma comunicação que poucos estimam. Porém, o último gravado, foi o do acidente que desencadeou a perda de seus pais, e de si próprio.
O episódio trouxe a mim a sensação de que, desde aquele fato, os membros do corpo do menino, por mais que se aparentavam conectados, demonstravam que uma disfunção havia sido provocada. A desconexão de si, do mundo, dos sons que tanto prezava, das certezas que se esfumaçaram diante de seus olhos.
A nitidez, que foi se perdendo com o passar do tempo, passou a assumir a roupagem da mosca, que é contemplada no início do filme: aquela que tudo vê, dos mais diferentes ângulos, aquela que sempre está a frente do nosso tempo. Ou seria o próprio tempo, que se esvai, que voa, que morre, que cresce, que vê, que cala, que floresce, que cuida, que machuca, que vai, e às vezes nem volta, ou volta em uma nova carcaça? Contudo, os princípios reativos são mantidos: o observar, o marcar, o perturbar, o aquietar, o irritar. Na verdade, sua função é única: ser cíclica, nós que a deformamos para condizer com o que esperamos.
Apesar de o filme destacar o interesse do rapaz para com uma moça, acredito que o romance mais importante seja o de sua própria vida. A narrativa se move em linhas do tempo que se emaranham, como um fluxo de memória que regride, mantém e progride, conforme as sinapses pipocam, ou melhor, conforme as memórias são despertadas.
A mão quando amputada, acorda perdida no espaço, no tempo, e começa a perseguir as lembranças engatilhadas pelo tato, que desperta a tristeza, a nostalgia, o medo, a esperança, já que o corpo tem memória.
Uma simples mão, demonstra bem – pela inclinação, pela locomoção, pelo ritmo, o que um corpo, e uma mente pensam, ou fazem. Deixando-nos vivenciar uma perspectiva, mesmo que irrealista, de que os nossos fragmentos podem se observar, e entender, que o fluxo segue, mesmo sem algumas partes nossas que são perdidas no percorrer da vida.
A jornada da mão representa o quanto que, às vezes, vivemos em busca de alguém que não existe mais. Uma versão única que se solidificou e marcou uma parte de nossas vidas. A busca de quem somos é espetacular, mas a resposta pode ser que não seja a esperada. Pode ser que mais indagações surjam no ponto que pensara ser ou guardara o segredo do enigma da Esfinge. Enigma que pode ser alimentado e fortalecido por nós mesmos por medo, insegurança, ou ilusão de sabermos quem somos.
A mão desconexa do corpo pode ser que desperte a investigação por lembranças que não se aplicam a realidade presente. Nos conduzindo a um estágio de negação de se entender, viver aquilo que é possível por hoje.
Não digo que o passado e o futuro devem ser ignorados, não mesmo. Apenas não deixem reger a sua linha do tempo atual. Equilibre sua energia no espaço/tempo “palpável”.