Incontáveis manhãs, quando encaro o espelho, me avizinha a sensação de que o meu nariz não combina com meu humor. A cor dos meus olhos não lembra, nem de longe, as cores esgarçadas de um céu incomum de janeiro que assisti da praia, aos catorze anos: um pesado tom de azul acinzentado que nunca mais me deixou e que, desde então, serve de comparação para o que eu considero um céu de tonalidades admiráveis e impactantes.
A hierarquia imposta aos nossos corpos – os pés que dão suporte, a cabeça que nos direciona ao conhecimento elevado – tantas são as vezes que estará fadada ao fracasso de tentar comportar nossas infindáveis maneiras de experimentar e extrair sentido de nossas vivências: quanto conhecimento vem de abaixarmos a cabeça e encostarmos a testa no que nos sustenta?
Quanta elevação alcançamos aos suspendermos nossos pés bem alto no ar e encontrarmos o nosso equilíbrio, exatamente, quando nosso corpo é revirado e nosso mundo é pendurado pelos pés que vão ao alto enquanto a cabeça vai ao chão?
Como fazer conviver: a imagem abstrata que faço de mim, me olhando de dentro, com a imagem materializada que pertence muito mais aos outros olhos que me observam do que a mim mesma?
Como se construíam todas as pessoas que viveram eras antes de podermos nos encarar, julgar e comparar com os outros diante do espelho?
Quando não existiam espelhos e nossa imagem corporal só existia dentro de nós, eram os olhos alheios ainda mais pesados ou mais leves ao olharem uns para os outros e servirem como nosso/deles absoluto reflexo?
Meu corpo caminha pela terra em linha reta: meu semblante infantil é inalcançável, enquanto minhas aflições da infância, felizmente, me acompanham a todo momento.
Não posso imaginar com exatidão quais cicatrizes e marcas meu rosto de idosa vai exibir, mas sou tomada de ansiedade, projetos e promessas incumpríveis que me faço e que me assolam sobre o futuro. Meu corpo é datado e sólido enquanto minha identidade mais parece ser feita de espuma.
Como reconciliar um corpo que caminha e fenece de maneira linear e uma imensidão interna que se expande, todos os dias, em todas as direções?
Em defesa do corpo: não fosse ele, não nos seria possível tocar, sentir e amar um outro infinito tão vasto que nos olha de volta do outro lado da sala e que respira tão breve deitado, ao nosso lado, sobre a mesma cama.
O corpo que zarpa, feito nau que singra os mares e, um dia, vai se esfarelar num porto – mas a emoção da viagem é sem forma e sem fim.