A pandemia nos forçou a cavar nossos barros, a desenterrar nossos guardados, a espanar nossos ossos; retiradas todas as camadas de poeira sobre todos os espelhos da casa e da alma, ao nos exilarmos do mundo, nos tornamos, forçosamente, paleontólogos do eu – esse abismo nos olhando de volta no escuro, dilatando, a cada dia, sua companhia e sua presença feita de silêncio eloquente.
O quanto de nós e do que chamamos de vida são castelos de areia egoicos, decorados e devorados com distrações caras e supérfluas?
Os monstros internos, que alimentávamos com os vazios do estilo, do gosto e dos lugares perfeitos, tomaram conta da casa durante a quarentena e afiaram as garras, os dentes e a língua: exigiam suas mordomias de volta!
Descobriram, pelo noticiário na TV, que as asas pintadas nas paredes das fotos são feitas de tijolos e não servem para voar.
A pandemia, feito o sol de Ícaro, derreteu e jogou no chão centenas de workaholics que perseguiam dinheiro enquanto fugiam da família; milhares de celebrantes que já haviam se esquecido do porquê bebiam e dançavam; milhões de delirantes viajantes, cujo desejo, mais secreto e profundo, era que os aviões ficassem no ar para sempre – sem pouso, não precisariam lidar com a dureza do chão.
Não há que se atacar a frivolidade das aparências: se existem tantas escolhas, porque não podemos fotografar a fôrma e não comer o bolo? E ignorar o bolo? E deixar o bolo apodrecer, bem na nossa frente, dia após dia?
O isolamento nos serviu – a cada refeição – todo e cada prato que nos dá ânsia de vômito e que nos arrepia de pavor e nojo: o Master Chef do engulho no estômago.
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De entrada: suas escolhas movidas pelo capital. O prato principal: você não gosta da sua vida. E, de sobremesa: torta de climão familiar. Mas, existem os refrescos: com criatividade, tudo isso pode gerar views na internet.
Satisfeitos, porém sedados: sem as vidas de plástico que construímos lá fora, o confinamento nos apresentou às nossas vísceras: não é agradável a visão de nós mesmos quando não usamos os filtros corretos.
Nove meses depois do início de tudo e ainda aguardamos os retoques de celular que vão jogar nossas sujeiras de volta para debaixo do tapete; que vão desenhar sorrisos nos nossos rostos depressivos, decorar com flores as garrafas/provas do nosso vício, pôr uma fita rosa nas lives que escondem a violência doméstica.
Não somos obrigados a ver o quanto a vida e a sociedade são feias. Ou, o quanto nós não somos nem a metade daquilo que acreditávamos que poderíamos ter sido.
Se a natureza é sábia ou cruel, acredito que ela nos seja, na verdade, indiferente. O isolamento, a pandemia, as mortes, os cretinos, os que aprenderam algo e os que se lapidaram para ser ainda mais obtusos: somos, ao mesmo tempo, todo um universo de vontades e comiserações humanas, que nos projeta ao infinito e nos habilita a sonhar, mentir, chorar, ter vergonha, amar e enganar – a nós mesmos e a todos os outros.
E, ao mesmo tempo, somos insignificantes e pueris – diremos adeus como quem assopra uma vela. O equilíbrio é como uma corda que se estende entre esses dois extremos: céu e inferno. Vida e morte. On e off. E nós, os equilibristas – usamos sombrinhas para nos defender do furacão.
Doces ou atrozes. Mansos ou ferozes: somos frágeis e a vida é rara. Que isso e que tudo nos arranquem as cascas e nos insufle de vontade de descobrir aquilo que nos faz sentir – e não só parecer – vivos.