Cultura

Felicidade meio clandestina

“Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do  tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever.”

Clarice Lispector

O discurso me chega tão despretensioso, de flores, de ventos que o libertam ou de anseios que fazem questão de prendê-lo. Não sou a mais sábia nem medíocre que não possa dar asas ao que insinuo escrever, ao que pretendo trazer para perto ou afastar de mim.

A escrita, por vezes, é cambaleante, desliza entre pedras pontiagudas, atropela sonhos tão bem guardados e segue sem esmorecer, sem qualquer intenção de resgatar esmolas de um tempo. Ela é alinhada ao que eu vivo ou pretendo, ao que aguardo e ao que deixei escapar, escorregar de mim.

Graças a ela encontrei portos e soltei amarras, atraquei e resolvi guiar marés. Dei de acreditar em tantos símbolos e me tornei tão cética com sentimentos. Ela me devolve o que perdi há tempo e me arranca as precisões que cultivei com tanto zelo.

Graças ao seu arsenal e sua ausência, aproximo de mim e me alieno. Bordo elementos factuais e enovelo metafísicas, agrado plateias e escapo com minha fiel solidão. Dou de gritar com força uterina com as palavras que me aproprio e nego sentenças de existência até minha próxima morte.

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Não sei nada nem creio ter. Não canto o vindouro e nem decreto poemas guardados em gaveta. Sou apenas a incerteza que perambula nas construções menos observáveis. Não há mundo em tijolos, organizado com cimento, nem há o que recolher com as mãos. A vida é apenas isso; o que sempre nos aguarda.

Minha escrita tem me levado ao acampamento de outras possibilidades. Ela tem amansado o que explode e tem me provocado a ira.  Não melhoro meus alicerces, sou a invenção do que não me propus ser. E por conta do caos instalado e do afeto nas manhãs de inconstância, escrevo, lustro o papel com palavras adocicadas e aquelas com fel, que não cicatrizam a boca e nem o mais leve coração.

Vi que, mesmos sujeitos errantes, com tanto a dizer, mesmo com tantas faltas e lacunas, temos a palavra como elemento de coragem, de catástrofe, de amor e de desordem. Temo-la como semente e folha seca, sedimentada em solo úmido e, por vezes, seco também, como universo pairando e cômodos empoeirados. Ela que nos enlaça, nos aproxima como vi, nesse sábado, e nos dá a precisa ideia de “insaciedade”.

Somos mortais demais para desafiá-la, bastando a nós, escritores, ceder aos seus mandos e relativizar os impropérios da existência, a poesia descosturada nas banalidades, as vertentes que nos sustentam e o afeto que nos permite sentir.  É a escrita- a tentativa de vida- que permite a tantos olhar o outro e reinaugurar importâncias recolhidas de uma prosa, um poema, uma história.

Recolhida e tratada a escrita, escorre no papel e costuma deslizar entre outros olhos. São nestes olhos que perpetuarão tantas palavras e outras que, ainda, desavisadas, permanecem por aí. Sou feliz – ou quase- porque escrevo.

Simone Lacerda, cachoeirense de coração, é graduada e pós- graduada em Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Brasileira e estudante de psicanálise,  atuando como docente de Língua Portuguesa desde 2004. Participou do livro Esse Ofício das Letras, com quatro textos, e publicou seu livro –solo- Arame Farpado, em 2017, por meio do Edital da Secult, pela Editora Cachoeiro Cult, além de ter contribuído com seus textos para jornais, revistas e sites. Sem dúvida, uma mulher de vieses e vozes, com “estrelas nos olhos e asas na alma.”

Escritoras Cachoeirenses

View Comments

  • Oh, querida cronista, excelente professora, quant facilidade em trabalhar com as palavras... muito bem.
    Não deixe de mostrar seus textos, que trazem seu lirismo muito particular.
    Vai um abração...

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