“A vida é uma série de eventos e sensações. Todo o resto é interpretação.” Rasheed Ogunlaru
É inevitável: criamos rituais sem sentido que, quando nos faltam, nos desconcertam. Medimos o tempo que levamos para finalizar uma tarefa banal. Apostamos corrida com a água que jorra da torneira e enche uma garrafa plástica, enquanto buscamos um objeto em outro cômodo. Testamos o tato da sola dos pés ao nos negarmos a abaixar para pegar um objeto com as mãos. Espasmos criativos. Fagulhas criadoras vazias de objetivo, mas cheias de relevância momentânea.
Poucas coisas me dão tanta satisfação quanto medir a passagem do tempo em símbolos pessoais e intransferíveis. Comemoro as datas das datas: há exatos dez anos, escrevi nesse caderno sobre como foi o meu dia. Em um mês de abril do passado, grifei com caneta vermelha frases de um livro querido. Pelos próximos meses, assistirei aos filmes que comemoram seu aniversário de lançamento. Quem eu era quando eles estrearam? Quem sou eu, agora que completam 10, 15 ou 20 anos?
Perseguimos o tempo como fantasmas de nós mesmo. A incessante sucessão dos segundos contingentes nos destruiria se não criássemos a trama simbólica que nos explica. Se não acreditássemos nela ao ponto da incorporação. Se não fôssemos, ao mesmo tempo, autores e enredo.
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Em 2003, eu assisti a muitos filmes. Títulos que ainda me parecem lançamentos recentes, pois passei os últimos 20 anos distraída e reticente. Colei um ou dois graus, assinei papéis irrelevantes, comprei algumas coisas, levantei e demoli paredes. Desatenta ao novo, o presente me escapou ligeiro. Não se guarda o que não se viveu. Não se vive o que não foi encantado pelo
símbolo, marcado pelo signo da relevância. Em simples palavras: com o tempo, tudo fica chato. Sobretudo, nós mesmos.
Porque “Encontros e desencontros” – Sofia Coppola, 2003 – me fascinou, quando eu tinha 19 anos?
Pistas: as aspirações de Charlotte eram parecidas com as minhas. Porque o mesmo filme me incomoda, agora, em 2023? Fatos: a melancolia de Bob me assusta e avizinha. Quando eles se encaram, na tela, posso me olhar no espelho. Livros, filmes e pessoas são como fotografias que não mostram nosso rosto, antes guardam uma parte de nós que não pode mais ser vista, só relembrada. Não há respostas certas ou erradas. Só interpretações. Versões das versões. Uma escrita invisível.