De repente, resolvi abrir minhas gavetas cerebrais. Nossa, quanto tempo passou! Vagarosamente, fui abrindo, tocando o puxador.
Ai, ai, os meus olhos veem muita coisa. Algo que mais me chamou atenção foi um lápis de cor verde escuro e me fez vir à tona uma memória olfativa fascinante. Comecei a viagem pelo tempo: “quando fazia a primeira série do antigo Primário, ganhara um lápis de cor verde escuro muito interessante, porque toda vez que você o umedecia ele marcava o papel como se fosse tinta de caneta. Vou lhe contar um segredo: eu usava caneta-tinteiro, cheguei a ter uma de pena dourada. Que ritual eu fazia quando a tinta acabava, eu pegava a caneta mergulhava no tinteiro e ela à semelhança de uma seringa fazendo-se o mesmo movimento era abastecida e pronta para novas escritas.”
Época boa! Saudosismo e nostalgia sem sentimentalismo! E a caneta era utilizada somente para passar a limpo as composições e os relatórios que eram copiados , primeiramente, no rascunho.
Pronto, de novo, observando o lápis na gaveta, a memória olfativa continua, uma vez que ela ficou marcada pela madeira do lápis que exalava um odor especial. A madeira proporcionava isso porque seu aroma funcionava como perfume. Talvez isso se explica porque, hoje, gosto de perfume amadeirado.
Novo, criança, modéstia à parte, já me sentia criativo fantasiava como seria escrever com o lápis cheiroso e misterioso. Imaginava que os escritores escreviam suas histórias com este tipo de lápis. Tomava maior cuidado para que a ponta do lápis durasse o maior tempo possível, já que toda vez que fosse apontá-lo ele ia diminuindo e isso me deixava triste. Não queria que meu lápis acabasse. A sua tripla função: escrever, tornar caneta e sentir o seu perfume era tudo de que eu mais gostava! Eu era feliz e sabia.
Hoje, fico observando as crianças, os adolescentes e jovens, até mesmo os adultos, de um modo geral, com celulares de última geração. Fico a imaginar que vida sofisticada eles levam e perdem um pouco a simplicidade de vida. Alguns mal sabem pegar num lápis e escrever algumas linhas no papel.
O verbo escrever, com frequência, tem sido substituído pelo verbo digitar, e, por viver neste cotidiano imediatista de uma vida corrida, a substituição vai mais além ocorrendo também com os áudios e fotos.
Não estou tecendo aqui comentários em forma de julgamentos. Quero apenas compartilhar momentos prazerosos vividos e que contribuíram para uma qualidade de vida.
A minha gaveta cerebral continua aberta e me conduz a vários universos, porque me faz recordar com carinho o lápis perfumado e junto dele há num cantinho um livro que ganhei de presente de minha professora da primeira série, Neusa Paiva Abreu.
Pois, D. Neusinha como carinhosamente era chamada. Lançara um desafio à turma que consistia no seguinte: quem terminasse, primeiro, a Cartilha de Alfabetização seria presenteado com um livro de Leitura, aqui acontece minha grande motivação para com a Leitura. Por ter ganhado esse livro , fui totalmente despertado para a Leitura. Estava eu nascendo como leitor. E isso perpetuou em minha vida. Assim como Carlos Drummond de Andrade se viu nascendo escritor e poeta dentro de uma sala de aula de sua Terceira Série primária.
A professora me dera o livro intitulado “Meu grande amigo”. E esse é uma verdadeira relíquia. Tem atravessado décadas em minha vida. Na dedicatória a mestra, com tamanha sinceridade, me desejou felicidades e sucesso nos meus estudos. E, de fato, o que me desejou tornou realidade.
O lápis não o tenho mais, mas o mais importante ficou em mim: a essência de uma memória olfativa e a iniciação na Leitura dentro de uma de minhas gavetas cerebrais. Enquanto escrevia o texto, ouvia Louis Armstrong cantando “What a wonderful world” (Que mundo maravilhoso). Em que o cantor nos convida a praticar as gentilezas que contribuem para a qualidade dos relacionamentos humanos , a valorização do outro, a esperança e gratidão. Atitudes que marcam e que também ficam guardadas em nossas gavetas cerebrais. Sempre deixo um clichê para vocês: Recordar é viver!