“A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.” A frase de Érico Veríssimo, no livro Incidente em Antares, de 1971, nos apresenta, sucintamente, todos os contornos de sua história. Na fictícia Antares – uma cidade governada por políticos corruptos – morrem sete pessoas no mesmo dia: 11 de dezembro de 1963. Coveiros em greve, os caixões ficam desamparados, à porta do cemitério, sem que se consiga que sejam enterrados. Chegada a noite, os defuntos – ultrajados com a falta de respeito demonstrada pelos vivos – levantam-se de seus ataúdes e começam a vagar pelas ruas, retornam aos seus lares, reencontram amigos, parentes e desafetos até que decidem se instalar no coreto da praça central da pequena cidade. E é desse púlpito que começam, então, a contar e descrever cada uma das mentiras, crimes, hipocrisias e desvios de moral dos moradores da pacata Antares. Uma vez libertados, pela morte, dos contratos sociais que regem a vida em sociedade e nossas relações íntimas e pessoais, uma vez à salvo das ameaças de perda do prestígio e do respeito da comunidade e da violência e coações vindas da lei e dos poderosos – os recém-falecidos despejam sobre os moradores a mais fétida e podre humana composição: aquilo tudo de que é feito o nosso mui respeitoso tecido social.
O filme, baseado na obra de Érico Veríssimo – 1994, disponível na Globoplay – não poderia ter sido lançado em momento mais oportuno. Enquanto o livro chegou aos leitores na década de setenta, em um período de ditadura militar, desaparecidos políticos, corrupção fardada (nunca efetivamente investigada), censura e repressão, a versão cinematográfica – adaptada de uma série da TV Globo – encontrou seu lugar em um Brasil que, em menos de uma década, tinha conseguido a redemocratização, uma nova e modernizada constituição, eleições diretas e o Impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto popular em quase 30 anos. Como diz o historiador Eduardo Bueno: “o Brasil é o país onde tudo que muda, o faz para que tudo permaneça exatamente igual”. Já se vão 50 anos desde o lançamento dessa obra literária e, em nosso país, o que conseguimos nesse tempo foi perder meio século. Incidente em Antares é o Brasil de 2021 –
e se nossos mortos não sobem coretos para falar, eles gritam através do número que cresce mais de um milhar por dia e que é, dolorosamente, apresentado em tempo real nos telejornais diários. O que conseguiria ser mais eloquente que isso, eu não sei.
Érico Veríssimo, escritor, falecido em 1975. Paulo José, ator, roteirista e diretor desse filme e muitos outros, falecido recentemente, em 11 de agosto de 2021. Tarcísio Meira, Paulo Gustavo, Nicete Bruno e quase 600 mil brasileiros mortos pela COVID 19, em um ano e meio de pandemia. Sobramos nós, os ainda viventes, os responsáveis por enterrá-los, um a um, a fazermos as nossas preces, a limparmos as lágrimas e a indignação do rosto e a seguirmos em frente, observando a enxurrada diária de notícias, tapando nossos olhos para tudo que não queremos ver, acreditando em mudanças que, no final das contas, não nos levarão a lugar algum. A cada dia, mais governados pelos esclarecimentos nos livros de Érico, pelos personagens e filmes geniais de Paulo, mas, também e infelizmente, pelo despotismo de generais mortos e pela necropolitica dos políticos corruptos do passado que ainda ecoam nos políticos de hoje e de sempre.
Quem disse que os mortos não falam, com certeza, tem problemas de audição. Eu os escuto o tempo todo.
E dependendo do morto, suas palavras me causam encantamento ou medo, aprendizado ou nojo, melancolia ou indignação. Os mortos são eloquentes, mudos e moucos estão os meio mortos, os mortos-vivos, os que ainda não passaram para o lado de lá, mas que nada fazem para serem dignos de ainda estarem por aqui. Os vivos surdos e vivos sem voz: esses são muitos. Esses existem demais.