O obscuro objeto do desejo: o quanto podemos dizer que sabemos, profundamente, sobre a raiz e a origem daquilo que queremos? Qual forรงa nos leva ao encontro da imagem idealizada de nรณs mesmos? E quanto desse trajeto se origina na falta, nos nossos vazios mais assombrados, nas nossas carรชncias mais incurรกveis? O que รฉ o talento e a disponibilidade para a vida artรญstica senรฃo uma grande busca por amor, validaรงรฃo e admiraรงรฃo? Para o bem e para o mal, mais cedo ou mais tarde, todos nรณs precisaremos encarar frente a frente o que fizemos do nosso eu e com qual forรงa nosso desejo nos conduziu e nos moldou durante o percurso.
O obscuro objeto do desejo: o quanto podemos dizer que sabemos, profundamente, sobre a raiz e a origem daquilo que queremos?
Jim e Andy – Netflix, 2017 – รฉ um documentรกrio sobre um documentรกrio: o filme intercala cenas filmadas durante as gravaรงรตes do filme de 1999 sobre a vida do comediante Andy Kaufman – interpretado por Jim Carey – e uma entrevista de Carey, quase 20 anos depois, refletindo sobre quanto a personificaรงรฃo que ele alcanรงou desse personagem o transformou completamente. O ponto de conexรฃo encontrado por Jim para incorporar Andy – e aqui uso a palavra incorporar propositalmente, jรก que sua entrega e o nรญvel de alcance da sua performance foram muito alรฉm da interpretaรงรฃo – foi, o que podemos chamar de ponto de ruptura. Quais eram os limites de Andy? Atรฉ onde ele chegaria para preencher-se de si mesmo com o que vinha de fora? Atรฉ que momento, ao ser visto e notado e querido e criador de algo รบnico, esse comediante – considerado como uma fusรฃo de genialidade e esquisitice – conseguiria viver e existir somente quando visto e assistido pelo seu pรบblico?
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Jim Carey experimentou o vazio de Kaufman com tamanha potรชncia porque esse tambรฉm era o seu abismo interior. ร o abismo de todos nรณs. Sem olhos para nos observarem, sem antagonistas para nos apontarem o dedo na cara, sem ouvidos que desaprovem a nossa voz, sem as risadas e as surpresas que causamos aos semblantes ao nosso redor, quem somos nรณs? A reafirmaรงรฃo da nossa existรชncia vem do outro, sejam poucos outros, como รฉ o nosso caso, os anรดnimos, ou aos olhos de milhares, milhรตes de outros, como acontece com aqueles que possuem a forรงa e a necessidade ideais para perseguir o sucesso e a visibilidade que os ampara e acalenta.
A reafirmaรงรฃo da nossa existรชncia vem do outro
E se todos ao nosso redor, um dia, fecharem os olhos? E se ficarem surdos e nรฃo puderem mais ouvir o som da nossa voz? E se ficarem insensรญveis ร nossa presenรงa? Seria possรญvel, em tal cenรกrio, continuarmos certos da nossa existรชncia?
Andy Kaufman fazia, quando era vivo, e Jim Carey o faz atรฉ hoje: desejar tanto e com tamanha forรงa que a alteridade confirme e comprove suas prรณprias realidade e existรชncia, que deem o tom e os retoques finais daquilo que eles nรฃo conseguem enxergar ao ponto de sentirem que nรฃo existem e que nunca existiram quando nรฃo estรฃo sendo observados , assistidos. ร somente a presenรงa dos outros que os concede a vida. Sรฃo os olhos dos outros que movem as cordas que os fazem danรงar, sorrir, viver, pensar, sentir e respirar. E na sociedade do espetรกculo eterno em que vivemos, nรฃo somos, todos nรณs, tรฃo vazios e tรฃo desejosos e tรฃo dirigidos pelos olhos alheios quanto eles?
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E se todos ao nosso redor, um dia, fecharem os olhos? E se ficarem surdos e nรฃo puderem mais ouvir o som da nossa voz? E se ficarem insensรญveis ร nossa presenรงa? Seria possรญvel, em tal cenรกrio, continuarmos certos da nossa existรชncia?
Porรฉm, infinitamente menos artรญsticos, menos talentosos, menos interessantes e com uma plateia absurdamente menor. O que faz com que nosso espetรกculo diรกrio tambรฉm seja bem mais triste e comum. A fama รฉ sรณ uma canรงรฃo de ninar que embala as crianรงas quebradas antes delas dormirem. E sรณ as mais rachadas e destruรญdas conseguem esse acalanto. Mas, apesar de ser uma canรงรฃo triste, que o evasivo objeto de desejo nรฃo permite que seja percebida assim, ainda รฉ uma canรงรฃo consoladora e doce que a maioria de nรณs nunca vai ouvir.
Nossos abismos anรดnimos nรฃo tem eco.