‘Aqui si inicia uma nova jornada da minha vida, pois a literatura é irmã gêmea da liberdade’ Rosa Cândida de Freitas – Escritora da Penitenciária Feminina de Cariacica, no livro Um Lugar de (e que) fala
Literatura é intervenção. Essa afirmação não me sai da cabeça, desde que recebi, pelo correio, o livro Um Lugar de (e que) fala, organizado por Kátia Fialho e Elaine Dal Gobbo. Retirei o exemplar do envelope, sentei-me e comecei a ler. Poucas horas depois, havia terminado, finalizado uma leitura daquelas que nunca termina, porque o mundo muda assim que chegamos à quarta capa. Aliás, nós nos transformamos assim que lemos a primeira página.
Após uma oficina de escrita com detentas da penitenciária feminina de Cariacica, as duas organizadoras, ambas imortais da Academia Cariaciquense de Letras, publicaram um livro com 21 crônicas escritas pelas participantes do projeto, com apoio e realização Funcultura e Governo do Estado do ES.
Há uma frase de Kafka que sempre me intrigou. Não posso dizer que discordava dele, mas sim que não me sentia completamente convencida. “Um livro deve ser o machado para o mar congelado dentro de nós”, escreveu certa vez o autor tcheco. Foi quando li a seguinte frase, na crônica de Silvia Ramos Trancoso, que recebi no peito o machado de Kafka: “Estou presa há 3 meses choro todos os dias com sds dos meus pais da minha vida que estou perdendo lá fora, hoje do valor a cada amanhecer estou mais perto de Deus até uma formiga eu chamo as amigas pra ver olho pra pedra do moxuara e oro o salmo 121 todos os dias e ainda tem um passarinho da cabeça vermelha que quando aparece canta um alvará e todo dia acho que vou ganhar o meu alvará mas tá um pouco difícil.”
Leio avidamente, desde criança. Já li sobre pássaros que cantam a aurora, o entardecer, a morte, a tragédia, a voz de ser amado, a paz. Mas nunca me esquecerei do pássaro de cabeça vermelha que canta um alvará de soltura. A experiência de alteridade dessa frase me acertou como a um desastre. Retomo aqui a frase que abre esse artigo: literatura é intervenção porque quebra o mar congelado dentro de nós.
Não pretendo, ao falar sobre esse livro, relatar ou avaliar a relevância de um projeto como esse. Para aqueles que não percebem, imediatamente, a urgência dessas oficinas e a beleza dessa publicação, não há palavras que possam se encarregar de convencer uma alma tão mesquinha. A sensibilização através das palavras é o contrário da burrice, da escuridão interior.
Meu propósito, com esse texto, é ressaltar e enaltecer a literatura, bem como a todas as escritoras presentes na obra. Quem pretende escrever deve sempre ter em mente que um mal escritor não é aquele que comete “erros” de gramática, conjugação ou concordância. Um mal escritor é aquele que não sabe quem é, que finge ser outra pessoa. Ao mentir para si mesmo, o escritor falho não convence, não emociona, não imprime verdade às suas linhas. As escritoras da penitenciária de Cariacica engrandecem a literatura capixaba. Para mim, foi uma honra ler tão fina, visceral, admirável e, acima de tudo, verdadeira coletânea de crônicas. Às organizadoras do projeto: muito obrigada pela argúcia e sensibilidade de enxergarem a escultura escondida no bloco de mármore das grades.
Para comprar o livro, entre em contato com a jornalista Elaine Dal Gobbo, WhatsApp 27 99977-4521
Dedico esse artigo para minha amiga Raquel Poleto, que me indicou esse livro.