Uma página na luz
Não desenhamos
Somos desenhados
Não escrevemos
Somos escritos
Somos algo entre a luz
E a superfície do mundo
Somos uma espécie
De filme revelado
Poema do livro Mulher do Interior
Quis o destino que eu lesse dois livros ao mesmo tempo – O Leitor como Metáfora, de Alberto Manguel, e Mulher do Interior, segunda obra que trago para a Coluna Leia Mulheres, de Denise Ramos Gonçalves. Lembrei-me da autora, mesmo sem conhecê-la pessoalmente, nas passagens em que Manguel compara os leitores a viajantes. Ao se inscrever para esse projeto, a autora informou que “ já residiu em sete cidades, passando por estados como Minas Gerais e São Paulo, além de países como França e Chile, onde vive atualmente.” Ouso uma divagação, à partir do livro irretocável do autor argentino: escritores andarilhos guiam os leitores por sua cartografia literária, sentam-se ao seu lado para apreciarem, outra vez, a vista que passa ou permanecem em seus portos, em delicada despedida, vendo-nos partir para desbravar, sozinhos, os caminhos já trilhados que se farão intocados e misteriosos, a cada leitura? A conversa assíncrona entre autor e leitor é um encanto que me inquieta e A Mulher do Interior só revelou meu destino em suas últimas páginas.
A princípio, o título me aguçou: as paisagens interioranas evocam em mim uma melancolia e um desamparo dos quais nunca escapo. Há sempre uma atmosfera de retorno, de regaço, quando penso em varais cheios de roupa ao sol, quando escuto os sons de quintais da infância, quando aflora a memória dos cheiros simples de comida boa e caseira. Lembranças do que não vivi, mas que me acompanham. Na capa, os detalhes que sempre observo: cores fortes do céu? De terra batida? Das mãos que se encharcam na água do tanque e se secam ao vapor do fogão? Quantos interiores levamos, feito bordados habilidosos, dentro de nós, por onde quer que nos arrisquemos, ao longo da vida?
A mulher do interior é Denise, sou eu, somos todas nós. Ela está em todo lugar. Aos poucos, página por página, os poemas me revelaram o que se escondia depois de cada curva sinuosa das estradas que imaginei agrestes, debaixo de cada sombra fresca, nas entrelinhas dos versos, no subtexto sugerido pelas mãos que se escrevem: caminhamos em círculos – sejam eles pequenos e breves, como um passeio vespertino sucedido pelo retorno ao lar, ou amplos e abrangentes, almejando abraçar o mundo, adiando o reencontro com tudo que veio antes, mas que nunca nos deixou.
Dentro de cada mulher, pulsa um interior que transborda vida – o fio invisível da ancestralidade, da semente que fomos e da que geramos e fazemos florescer. A beleza está nos detalhes que deixamos escapar, quando vemos paisagens e pessoas pela primeira vez. Reencantar o que foi visto, reler o que foi lido, revisitar o que é costumeiro. É chegado o momento de perdoar o tempo, pois sem ele não somos capazes de nos reconhecer. De respondermos, com simplicidade, à insistente pergunta: de onde viemos? – De dentro de uma mulher. De sorrirmos ao entendermos para onde vamos: para o interior de nós mesmas.
Sobre o Livro: As mudanças de rota, somadas à participação em laboratórios de escrita criativa, impulsionaram a produção dos poemas. A escrita, que começou coletiva, com saraus e rodas de leitura, se tornou um hábito, somada à pintura, ao desenho e ao teatro, outras paixões antigas. Os poemas, acompanhados de 11 ilustrações, mapeiam o nomadismo de “guria”, aluna do Colégio Estadual do Paraná, vizinha do Largo da Ordem em Curitiba, à mulher que experimenta linguagens, migra e não volta, a não ser pela memória e pelo afeto. Os versos brincam com coisas do cotidiano e versam sobre a angústia do crescimento de si, da visão política e de mundo.