Muito bem guardadas nas caixinhas de nossa memória estão lembranças maravilhosas, algumas quase esquecidas pelo tempo, mas basta um cheiro, uma frase, uma música e elas ressurgem seguidas pelas emoções vividas no nosso passado.
Cheiros, músicas e tantas outras formas de despertar nossas lembranças são como chaves que abrem nossas gavetas escondidas, espaços que apenas nós temos acesso, são nossas joias raras guardadas no nossa porta-joia interno.
Algumas dessas lembranças são ruins, e para nossa defesa nosso cérebro decide que, de fato, são lembranças que devem ser esquecidas, evitando, portanto, a dor de revivá-las constantemente. Ainda assim encontramos chaves que nos levam de volta a essas memórias, a essas chamamos de gatilhos e, muitas vezes, elas despertam grandes dores que nos levando a revivê-las de tal forma que a essas devemos cuidar, sendo necessária a ajuda de um profissional.
Mas, voltemos ao que me trouxe a esse texto.
Sou cheia de caixinhas, cheia de porta-joias no meu interior, e as chaves não estão escondidas, elas estão espalhadas pelo tempo.
Às vezes, esbarro em uma arruda e o cheiro invade minhas narinas, no mesmo instante sinto um relaxamento tomar conta do meu ser. Outras vezes, quando estou bem cansada, colho suas folhas, fervo e tomo um banho sentindo o cheiro invadir o espaço enquanto retira todo meu cansaço e renova minhas energias.
O motivo? Quando nasci, diante das dificuldades, o sabão usado era produzido pela minhas mãe e avós. Ele continha muita soda cáustica e não poderia ser usado nos bebês, e não havia dinheiro para um simples sabonete. Na época, eram também mais caros do que atualmente com tantas variedades, e a arruda era fervida e usada nos nossos banhos até os seis meses de idade, minha memória olfativa mantém a ideia de pureza, relaxamento e acolhimento diante do cheiro da planta.
Ontem, em uma doceria de Cachoeiro de Itapemirim-ES, uma música lançada quando eu tinha 12 anos me levou de volta às noites escuras, dentro de mim sou capaz de ver a menina alegre do interior.
A música de Luan e Vanessa se tornou sucesso e, na época, tocava em todos os programas de rádio, eu a decorei. Até hoje, conheço de cor sua letra e o seu ritmo.
Durante as noites escuras, sem lua, apenas as estrelas, que, devo dizer, no interior elas são numerosas e ainda me surpreendem, os vagalumes, sons de grilos e o coaxar dos sapos enquanto caminhávamos quatro quilômetros após a coroação de Nossa Senhora, eu me tornava parte do som noturno, cantando em alta voz a música e dividindo com a natureza noturna minha alegria.
Citei as noites de lua nova, pois acredito ser as mais marcantes, havia um contraste, minha mãe tinha muito medo de andar na noite, e eu, amava.
Mas, muitas vezes, dividi minha voz nas noites de lua cheia também, essas noites aumentavam os sons dos animais noturnos, mas diminuía a visibilidade das estrelas e dos vagalumes.
Aos meus 12 anos, deixamos o interior, ganhei novos amigos, novas portas se abriram, mas perdi a cantoria noturna. Na cidade, se eu andar na noite cantando em alta voz serei chamada de louca e ouvirei alguns vizinhos chateados.
As estrelas quase não são vistas, os vagalumes são raríssimos, mas foi nessa mudança que li um romance do mundo animal, o livro “O caso da borboleta Atíria”. Lembro-me que, na época, o pequeno livro me levou às lágrimas.
Adulta, não entendia o que me emocionou tanto.
Há três anos, acampei no Pico da Bandeira, no Acampamento Casa Queimada, do lado do Espírito Santo. Levei minha filha. E, antes de sair, eu disse a ela:
__ Você vai ver o que é um céu coberto de estrelas.
Ao que ela respondia desacreditada:
__ É igual em todo lugar.
Chegamos bem cedo e nos organizamos. O dia passou lentamente, como só nesses lugares eles passam. Juro, o relógio do interior não conta as horas como o da cidade, e o tempo que corria tranquilo e calmo trouxe a noite.
Em poucos instantes, estrelas de todos os tamanhos invadiram o céu, as constelações, o caminho de noiva… tantas esquecidas por mim.
Minha filha acompanhava o surgir das estrelas fascinada, repetia o tempo todo olhando para o céu:
__ Mãe, quanta estrela!
E eu:
__ Eu disse, não é igual.
Ela passou mais de uma hora e meia admirando o céu, enquanto repetia cansativamente:
__ Mãe, quanta estrela!
Ela foi uma das chaves da minha gaveta de joias. Vi-me de volta à infância.
De volta em casa, decidi ler novamente o livro “O caso da borboleta Atíria” e então entendi que aquela história é parte de mim, de quem sou, é o reconectar com a natureza, é ler as minhas raízes, é mais que a chave de uma gaveta, é a chave de palácio interno.

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Uma resposta
Texto maravilhoso, Mércia! Memórias semelhantes a algumas que eu tenho, talvez porque nosso território seja a parte que nos une! Parabéns!