Há quem queira nos converter em um brasileiro coxo que é isso tudo que está aí: uma face alucinada, uma fala ufanista, vestido com bandeiras que não são a nossa, cantando hinos pra ninguém ouvir, rezando aos mortos assassinos que esconderam os ossos da nossa história.
O brasileiro é a criança que reza o catecismo e se batiza na terra quente. Que abaixa os olhos diante do pai violento, do coronel ambicioso, da igreja que ensina o que a cabeça nunca esquece e que chama de culpa. A criança que ama a mãe violentada. A criança faminta que enfia as mãos na terra pra colher alimento e no próprio corpo pra tirar prazer e sonho. É a criança feita de pasto reprimido e acuado que vai correndo pelos trilhos do trem explodir na cidade a putaria e a devassidão que faz chorar a mãe misericordiosa e faz rugir o pai temente às escrituras.
O brasileiro é o jovem cansado, que carrega no sobrenome e no próprio sangue as benesses podres recebidas desde as capitanias hereditárias – ou na pele e no próprio suor as cicatrizes das chibatas ancestrais que ainda dividem os membros do seu corpo: mãos para a labuta. Ombros para o peso dos funestos camburões negreiros. Ventres que ainda não são livres e que ainda dão à luz filhos brancos, pretos e índios. Mas todos eles filhos do Brasil, não importando quantos cânticos os trinetos de Europa ainda insistam em cantar para esquecer que nasceram aqui.
O brasileiro é o adulto urbano que só sente a selva em pesadelo. Que nunca plantou uma semente e que só colhe fumaça na cara. Que não entende nada de onça pintada, de Chiquita bacana, de vidas secas, de menina pobre vendida pra bordel de político, de agro pulp fiction, de reforma agrária. E sem se dar conta, equilibra a vida no cordel do fogo encantado do salário minguado. E sem se envergonhar, dá uma festa à beira mar na cobertura do prédio que foi presente de mui respeitoso rei de Portugal para o seu tataravô. E sem atinar, xinga os quebra-molas das estradas que são feitos de corpos de índios. E sem acordar, não vê que há muito passado que o Brasil é o país de um futuro que nunca chega.
O que o brasileiro vê quando se olha no espelho? Um ponto de interrogação. O que o brasileiro vê na tela do cinema? Vê um mundo inteiro que não é o seu – e, por isso, recria seu próprio leão da Metro Goldwyn Mayer, feito de cangaço, orixás, melado de cana, tecido barato, poeira de asfalto e conchinhas do mar. E tocando a própria cara, cobre as mazelas envergonhadas com purpurina. Traga e bebe. Finge e reza. Ri e chora. E se convence que a vida – a vida é melhor quando a gente canta pra Deus e pendura a dança na conta de Satã.