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Será que há escolha?

escritoras-cachoeirenses2-07-01-23
Escritoras Cachoeirenses

Quando vivemos em um bairro de periferia, aprendemos a conviver com dores profundas resultantes da criminalidade que quase sempre vem da pobreza.

Diversas vezes, vi e ouvi políticos, empresário e até psicólogo dizendo que seguir o caminho do crime é uma escolha, já que muitos nascem e crescem na periferia e não se envolvem com o crime, no entanto, como quem assiste de perto à história dessas pessoas, tenho sérias dúvidas se para todos há uma escolha.

Saí do meu trabalho cansada, não tinha sido um dia rentável e eu também com poucas condições precisava alimentar meus três filhos.

Passei na padaria e, ao invés de levar quatro pães, decidi comprar sete e uma caixa de leite.

Peguei meu ônibus, desci no meu ponto e segui o restante de caminho a pé, do ponto de ônibus até onde eu moro preciso andar por dez minutos morro acima.

Assim que entrei na minha rua, caminhei por trinta metros e a chefe da boca de fumo da minha rua estava encostada na muro, a meia luz.

Eu a cumprimentei como de costume, a conhecia há um tempo, acho que entre cinco a sete anos, não tenho certeza.

Ela sorriu triste e me pediu:

— Boa noite, você tem uns dez reais para me dar? Hoje é meu aniversário, e eu queria comprar pelo menos um pão para comer agora à noite com meus filhos (um casal, a menina de três anos), só tinha um restinho de leite, dei a eles e não deu nem para matar a fome, ela está lá embaixo chorando.

Encostei ao lado dela no muro, pensei que ela precisava de mais do que 10,00.

— Não tenho dez reais, na verdade não tenho dinheiro algum, mas eu tenho uns pães, se não se importar posso dividir com você e deixar o leite, ainda tenho em casa. Falei enquanto me apoiava no muro.

— Muito obrigada, pode ser sim.

Retirei uma sacola da bolsa e enquanto dividia os pães tentei dar a ela o que ela mais precisava, atenção.

— Quantos anos você está fazendo? Perguntei.

— Vinte e três.

Por dentro senti um choque, ela parecia muito mais velha e a longa história dela também passava a impressão de que fosse bem mais velha.

— Parabéns. Falei e com o olhar deixei claro que queria ouvi-la, então ela continuou.

— Meu pai é alcoólatra, bate na minha mãe quase todos os dias, quando fiz quinze anos ele agrediu todos em casa e me colocou na rua, tentei trabalhar, fiz algumas faxinas, mas por causa da minha idade eu não conseguia algo para me sustentar e assim vim parar aqui, no seu bairro e iniciei a venda de drogas, com a pouca idade e falta de experiência engravidei, o pai é usuário, portanto, crio meus filhos sozinha.

Eu sabia que ela era moradora de um bairro de periferia rival ao meu, e acompanhava os altos e baixos.

— E seu irmão? Perguntei, e ela continuou.

— Dois anos depois meu pai quase matou meu irmão e o colocou na rua também, ele ia completar quatorze, eu o trouxe para cá, fiz de tudo para que ele não se envolvesse, mas vivendo e convivendo com esse mundo, é o que você vê, também se tornou traficante, aos poucos meu pai colocou os cinco filhos para fora de casa, eu não ia fazer com meus irmãos o mesmo e acolhi a todos, mas também não queria que meus irmãos e filhos se envolvessem com o crime, como já tinha idade passei a trabalhar, manter a venda de drogas e sustentar minhas três irmãs caçulas e meus filhos. Hoje estou fazendo 23 anos e não tenho o que comer, tive problemas com a batida semana passada e estou devagar, mas por outro lado consegui evitar que minas irmãs fizessem o mesmo que eu. Elas estão trabalhando com faxina, eu nunca vou conseguir sair, mas cuidei delas.

Nossa conversa se encerrou ali, entreguei os pães e o leite enquanto ela me agradecia profundamente, dei-lhe um abraço e os parabéns e segui pensando. Será que todos tem de fato escolha? Ou para aqueles que vem da periferia, escolha é algo impossível?

Apesar da sua vida errante passei a respeitá-la por sua trajetória de coragem mesmo diante de tantas falhas.

Mércia Souza. Mãe, avó, dona de casa, artesã crocheteira, escritora, fundadora do projeto “Mulheres com Voz”. Sonha com um mundo onde mulheres sejam ouvidas e que os homens saibam ouvi-las, exercendo, assim, a igualdade e a compreensão

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