Quando vivemos em um bairro de periferia, aprendemos a conviver com dores profundas resultantes da criminalidade que quase sempre vem da pobreza.
Diversas vezes, vi e ouvi políticos, empresário e até psicólogo dizendo que seguir o caminho do crime é uma escolha, já que muitos nascem e crescem na periferia e não se envolvem com o crime, no entanto, como quem assiste de perto à história dessas pessoas, tenho sérias dúvidas se para todos há uma escolha.
Saí do meu trabalho cansada, não tinha sido um dia rentável e eu também com poucas condições precisava alimentar meus três filhos.
Passei na padaria e, ao invés de levar quatro pães, decidi comprar sete e uma caixa de leite.
Peguei meu ônibus, desci no meu ponto e segui o restante de caminho a pé, do ponto de ônibus até onde eu moro preciso andar por dez minutos morro acima.
Assim que entrei na minha rua, caminhei por trinta metros e a chefe da boca de fumo da minha rua estava encostada na muro, a meia luz.
Eu a cumprimentei como de costume, a conhecia há um tempo, acho que entre cinco a sete anos, não tenho certeza.
Ela sorriu triste e me pediu:
— Boa noite, você tem uns dez reais para me dar? Hoje é meu aniversário, e eu queria comprar pelo menos um pão para comer agora à noite com meus filhos (um casal, a menina de três anos), só tinha um restinho de leite, dei a eles e não deu nem para matar a fome, ela está lá embaixo chorando.
Encostei ao lado dela no muro, pensei que ela precisava de mais do que 10,00.
— Não tenho dez reais, na verdade não tenho dinheiro algum, mas eu tenho uns pães, se não se importar posso dividir com você e deixar o leite, ainda tenho em casa. Falei enquanto me apoiava no muro.
— Muito obrigada, pode ser sim.
Retirei uma sacola da bolsa e enquanto dividia os pães tentei dar a ela o que ela mais precisava, atenção.
— Quantos anos você está fazendo? Perguntei.
— Vinte e três.
Por dentro senti um choque, ela parecia muito mais velha e a longa história dela também passava a impressão de que fosse bem mais velha.
— Parabéns. Falei e com o olhar deixei claro que queria ouvi-la, então ela continuou.
— Meu pai é alcoólatra, bate na minha mãe quase todos os dias, quando fiz quinze anos ele agrediu todos em casa e me colocou na rua, tentei trabalhar, fiz algumas faxinas, mas por causa da minha idade eu não conseguia algo para me sustentar e assim vim parar aqui, no seu bairro e iniciei a venda de drogas, com a pouca idade e falta de experiência engravidei, o pai é usuário, portanto, crio meus filhos sozinha.
Eu sabia que ela era moradora de um bairro de periferia rival ao meu, e acompanhava os altos e baixos.
— E seu irmão? Perguntei, e ela continuou.
— Dois anos depois meu pai quase matou meu irmão e o colocou na rua também, ele ia completar quatorze, eu o trouxe para cá, fiz de tudo para que ele não se envolvesse, mas vivendo e convivendo com esse mundo, é o que você vê, também se tornou traficante, aos poucos meu pai colocou os cinco filhos para fora de casa, eu não ia fazer com meus irmãos o mesmo e acolhi a todos, mas também não queria que meus irmãos e filhos se envolvessem com o crime, como já tinha idade passei a trabalhar, manter a venda de drogas e sustentar minhas três irmãs caçulas e meus filhos. Hoje estou fazendo 23 anos e não tenho o que comer, tive problemas com a batida semana passada e estou devagar, mas por outro lado consegui evitar que minas irmãs fizessem o mesmo que eu. Elas estão trabalhando com faxina, eu nunca vou conseguir sair, mas cuidei delas.
Nossa conversa se encerrou ali, entreguei os pães e o leite enquanto ela me agradecia profundamente, dei-lhe um abraço e os parabéns e segui pensando. Será que todos tem de fato escolha? Ou para aqueles que vem da periferia, escolha é algo impossível?
Apesar da sua vida errante passei a respeitá-la por sua trajetória de coragem mesmo diante de tantas falhas.