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Foto ilustrativa: Pixabay

O anjo caído

Lorena_Marchesi
Lorena Inocência Marchesi Caetano

Crônica: Lorena Inocência Marchesi Caetano, escritora.

 

Ela nem era popular. Ela era séria e meio sozinha. Na roda de amigos nunca falava, só sorria. E sorria com um sorriso tão singelo que não se sabia se era graça ou se era pudor. Ninguém tinha coragem de contar certas piadas na sua frente. Ela era querida, mas nunca ia às festas. Com o tempo nem a convidavam mais. Eu sim, eu ia. Eu estava em todas e ninguém esquecia de mim. Ninguém esperaria que eu reclamasse.

Aquela pessoa era tão simples que eu nem sentia a sua falta. Os outros sentiam, por isso eu logo ratava para que não sentissem. Eu ocupava os espaços. Na Universidade me fez viver péssimos anos, a cada novo dia em que ia completando sua jornada, como se buscasse insatisfeita por me fazer cada vez mais infeliz, irritada, inferior, invejosa. E ela nem se dava conta disso.

Eu sempre fui a aluna mais aplicada, mais leitora, mais exigente. Ela só estudava o bastante, mas nunca mais do que isto. Aceitava-se e agradecia pelas boas, somente boas, notícias. Nunca falava de si mesma, mas no final do primeiro ano disse que foi pedida em casamento, com um sorriso tal que ninguém podia, só ela.

“Você tem certeza que está fazendo a coisa certa? Vocês namoram há tão pouco tempo! O quê? Sete meses?!” – eu disse. E pensei: namoro há quatro anos e meu noivo não se decide. O que poderia fazer um homem querer aquela mulherzinha? Além de tudo, ela era tão pequena que ainda comprava suas roupas da seção adolescente da Riachuelo.

Eu passei no vestibular da primeira vez que tentei aos vinte e comecei a estagiar desde o segundo semestre. Ela morava com os pais e trabalhava no escritório de contabilidade do tio. Tentou alguns estágios também, mas todos passamos à sua frente. Ela continuou tentando por mais um tempo e desistiu.

Mas os infortúnios não pareciam abalar o seu humor. Continuava séria, sozinha, sem graça e sem festas. Os meses seguintes ao pedido de casamento foram uma completa tortura para os meus nervos. Conseguiu amizade com uma garota da classe com quem compartilhava as experiências pré-nupciais. Dava para ouvi-las conversando.

“Você já escolheu seu vestido?”

“Ainda não. Ainda não encontrei nada que me agrade. Quero algo bonito, mas simples. Talvez um clássico. Nada muito cheio de babados ou rendas”.

Eu ouvia e pensava: é para que ninguém saiba que ela é a noiva; e assim todos os dias uma novidade. Aquele casamento podia chegar rápido só para acabar com os comentários e cochichos da turma. Irritavam-me, irritavam-me. Irritavam.

Surpreendeu-me quando um dia se aproximou de mim sorrindo – eu desconfiada – e disse que queria que eu fosse sua madrinha de casamento. Mas por que eu?!

“Sei que não somos muito próximas, mas é que eu te admiro tanto! Você é tão inteligente, tão bonita, tão segura! Às vezes queria muito ser como você”.

Imagine, querida! – Eu disse. Você que é muito gracinha. Eu devia ganhar um Oscar por isso. Mas não fui, é claro. Inventei que já tinha outo compromisso inadiável para aquele dia. Ela lamentou, mas compreendeu.

Conversar com ela agora se resumia a igreja, músicos e festa. Parecia não ter outra coisa para fazer. Eu ficava imaginando como podia existir alguém que esperasse tão pouco da vida. Como foi mesmo que ela ingressou na faculdade? A antepenúltima da classificação. Um dia me pediu para fazer um trabalho em grupo com ela, mas é claro que eu não faria. “O grupo já está completo” – lamentei. A verdade é que eu não confiava. Tudo que ela fazia era razoável. Medíocre. Bom. Mas como era educadinha, acabava conseguindo algum elogio dos professores.

Chegava o dia do casamento e ela trouxe convite para a turma. “Gente, não deu para fazer tantos convites, por isto este é endereçado à turma. Sintam-se todos convidados para a cerimônia e festa”. Coisinha mais sem classe. Ela marcou o casamento para um domingo. Um domingo! A igreja dela não tinha vaga para o sábado. E ela não deve ter planos de fazer nada da sua vida inteira, a não ser casar.

Tinha que bolar um plano para não deixar ninguém da turma ir àquele casamento. Foi fácil. Havia uma prova muito difícil para aquela semana e eu consegui convencer o professor de adiá-la par a segunda-feira. “É que já tem outra prova neste mesmo dia. Nós estamos preocupados” – ninguém reclamaria.

Aconteceu exatamente como eu queria, ninguém saiu de casa naquele domingo, estudando para a bendita prova. No sábado seguinte eu marquei uma festinha na minha casa e todos vieram.
Tão logo chegara de lua-de-mel, pôs-se a contar detalhes de sua viagem ao sul a quem ouvisse:

“Perdoe-me não ter ido…”, tentavam esclarecer, mas não dava tempo, pois ela não parava de falar. Mas a um outro respondeu: “Não se desculpe, eu entendo. Se você não dissesse não saberia, pois tudo foi tão incrível e eu estava tão absorvida que mal conseguia distinguir quem estava lá”. Impressionante. Esperava que ficasse um pouquinho magoada, mas não. Não julgava ser tanto.

Fim deste capítulo. Chegavam dias de grande glória para mim. Decidi finalmente terminar aquele cansativo relacionamento no momento em que ouvi-lo dizer a um amigo que estava satisfeito com aquele “namoro estável”. Resolvi dar uma chance ao bonitão do último ano – tipo atlético, bem vestido, boa pinta e bom papo. Não ia me arrepender.

Mas haveria um dia a ser ainda mais especial: foi o dia em que o reitor veio à sala anunciar-me ganhadora do Concurso Anual de Pesquisas Acadêmicas da Universidade. Eu ia direto para o mestrado ao fim do curso. A turma toda ficou muito orgulhosa e eu agi com naturalidade. Ele ainda anunciava o prêmio quando eu comecei a pensar que justo naquele dia a nossa casadinha resolvera faltar à aula.

Contava que o tempo mostrasse que eu estava certa e revelasse que aquele seu conto de fadas perderia a graça tão logo caísse na rotina. Ela se deprimiria ao ponto de afastar até aquela amiga mais próxima e afundaria nas sombras escuras da solidão, enquanto eu continuaria brilhando como uma estrela radiante de sucesso e popularidade.

O reitor já tinha terminado de falar quando entrou um colega afoito me resgatando de minhas projeções. “Gente, gente, vocês não vão acreditar quem acabou de ligar dizendo que está grávida!”

Me digam se eu não tenho razão para detestá-la com todo o meu ser? E ela nem fazia essas coisas de propósito. Ninguém lembrava mais da minha premiação agora eles estavam combinando o que fariam para comemorar com ela. “Já sei: amanhã vamos fingir que não sabemos de nada e então vamos todos para a sua casa depois da sua aula. Alguém fica segurando ela até chegarmos lá.” E então se ouviu: “Ótimo”. E outro: “Muito bom”. E: “Ela vai gostar”. Mas não ia ficar sem troco.

“Alô”.

“Oi, sou eu. Estou ligando para te dar os parabéns. Soubemos hoje que você está grávida”.

“É. Eu também só soube hoje. Estamos tão felizes!”

“Pois é, você deu aquele telefonema no início da aula e o cara entrou na sala anunciando a novidade. Imagine que não se falou em mais nada depois disso. Olha, até o reitor já está sabendo”.

“O reitor?! Mas como?!”

“Ah, ele veio anunciar que eu tinha ganhado o prêmio do Concurso de Pesquisas. Imagine, o reitor se dando a um trabalho desses!”

“Nossa! Meus parabéns! Você deve estar muito feliz com isso.”

“Imagine. Isso é legal, mas nem chega perto da sua felicidade. Tanto é que combinamos de fazer uma festa para comemorar contigo amanhã”.

“Ah, isso é ótimo. Então suponho que a turma esteja saindo hoje para comemorar contigo (?)”.

“Não, não. Hoje ia ficar muito em cima da hora. Resolvemos deixar para outro dia. Eu não ia dizer a verdade, né? Não para ela.”

“Aguarda só um momento então…”

“Alô”.

“E aí mamãe! Recuperada do choque?”

“Eu estou ótima, mas revoltada com uma injustiça: acabo de saber que uma colega nossa ganhou uma super premiação, e a turma não vai comemorar?! Eu exijo que a levemos a algum lugar amanhã mesmo!”

Percebi que do outro lado da linha o interlocutor não sabia o que dizer, e no dia seguinte ninguém sabia explicar porque a festa dela tinha melado.

Chegamos ao último ano e tinha a formatura para organizar. Eu estava mais ocupada em me preparar para o mestrado, por isso deixei que os outros fizessem tudo, afinal, carreira é sempre mais importante.

As semanas se passaram e só bem mais à frente é que me dei conta das opções esquisitas que a turma tinha feito. Comecei a achar que não devia ter largado mão. Mas já era tarde. Resolveram fazer a colação na própria faculdade, o culto na igreja lá da nossa “amiga” e uma festinha de qualquer jeito num cerimonial barato.

É claro que eu não ia comprometer minha graduação desse jeito. Comecei a articular com os colegas mais próximos, mais ou menos um terço da turma, para convencê-los a fazer um cruzeiro bem chique no lugar daquela festa. Como sempre, consegui aceitação imediata. Para azar do restante da turma, sobraram mais convites que eles tinham que pagar.

Os dias chegaram e eu ficava cada vez mais ansiosa por minha viagem especial. E mais, para voltar com histórias muito mais interessantes para contar do que os que ficaram. Não podia fazer feio, por isso comprei roupas, sapatos, biquínis, tudo novo, tudo o melhor. Me endividei sem culpa. Como o garotão se mostrava cada dia mais nada a ver comigo, resolvi dispensá-lo para não leva-lo de acompanhante.

Foi quando ouvi a notícia que me deixou tonta. Alguém podia ter me contado, com calma, mas deixaram que eu ouvisse da TV a respeito do golpe que a agência de viagens tinha dado em centenas de clientes. A Justiça levaria algum tempo para resolver as indenizações, mas eu entendi naquele momento que meu sonho de cruzeiro tinha naufragado.

Comecei a receber ligações de colegas me cobrando explicações sobre a escolha daquela agência, de quanto prejuízo eles tiveram e, pior, que agora eles teriam que correr com os demais colegas da turma para ver se alguém ainda tinha convites para vender. Foi demais para mim. Mas a uma semana da formatura não tinha outra opção para oferecer. E eles nem queriam me ouvir. Fiquei doente. Peguei uma febre daquelas. Tive que mandar um representante para receber a colação em meu lugar.

No dia da festa deles eu não quis sair da cama. Não tinha mais febre e estava melhorando, mas não tinha razão para falar ou sorrir. O garotão que eu tinha dispensado foi quem ficou comigo – queria uma chance de reconciliação. Me passou uma ligação que foi o meu golpe de misericórdia.
“Alô. Oi. Que bom que você atendeu. Ouvi falar que você não anda bem de saúde, mas não pude ligar antes.”

“Não é nada. Certamente foi algo que eu comi”.

“Sei. Olha, você não vai acreditar no que aconteceu hoje. Dois dos meus convidados me ligaram dizendo que não podiam mais vir à festa e eu fiquei com os convites sobrando. Isto foi logo cedo, mas só agora há pouco eu soube que você era a única que não tinha conseguido convites, por isso eu resolvi ligar. Quero que você venha como minha convidada”.

Depois de um breve silêncio, falei: “Lamento, mas estou muito indisposta. Além disso, não me preparei e não tenho roupa para ir – enquanto dizia, olhava para o guarda-roupa aberto com todas as roupas mais sofisticadas que tinha comprado para a viagem. – Me desculpe, mas não posso aceitar seu convite”.

“Ah, que pena. Queria tanto que você também viesse. Sei que não somos muito próximas, mas é que eu te admiro tanto! Você é tão inteligente, tão bonita, tão segura… Às vezes queria muito ser como você”.

“Imagine, querida. Você que é muito gracinha”.

Lorena Inocência Marchesi Caetano. Foto: Acervo pessoal

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