Já ouvi muitas pessoas dizerem que o que buscam na literatura é o que, na maioria dos dias, falta à vida. A dor da desgraça e do sofrimento, elas dizem, está nas ruas, nos noticiários, entranhado no cotidiano, não temos como escapar. Dos livros, querem conforto, alívio, um abrigo contra o que nos assola. Não posso discordar. Porém, me reservo o direito das ressalvas respeitosas.
Há uma carta de Tarot, o Arcano Maior número 17 – A Estrela – que simboliza, entre outros aspectos, a necessidade humana de esperançar. A palavra arcano significa mistério e, essa carta em especial, representa nossa humana, frágil e poderosa capacidade de acreditar. Em face da matéria mais brutal de que é feita a vida, sem essa capacidade não acredito que teríamos chegado tão longe. A habilidade de nos nutrirmos com o que não é real e que só existe dentro da nossa fervorosa vontade e dos nossos sonhos mais elevados é uma elaborada e fina evolução da capacidade de sobrevivência. Portanto, um traço admirável. Contudo, até certo ponto.
A face obscura da Estrela do Tarot é que esse símbolo tanto nos acalenta, quanto nos infantiliza. É tênue a linha que separa a esperança da ingenuidade, o otimismo da dissociação, a busca pelo encantamento da fuga da realidade. O brilho estelar, quando se torna tudo o que queremos ver, nos deixa cegos, pueris, idiotas.
Por mais paradoxal que possa parecer, o que alimenta nossa esperança, mas nos afasta da negação da vida e da imaturidade é a tragédia. Em sua origem, a tragédia é uma espécie de drama que retrata todos os piores males que se abatem sobre um indivíduo ou um povo, porém, seu eixo central é ressaltar a dignidade com que os personagens perseveram em sua jornada. A tragédia não exalta nossas dores, ela glorifica a capacidade humana de manter a cabeça erguida, mesmo diante da morte, da violência, da implacabilidade dos deuses e, mais cotidianamente, diante das injustiças que sofremos ou quando temos nosso coração partido.
O último livro do Ciclo Um de 2023 do Clube de Leitoras, Fúria – Editora Peabirú, 2022 – foi escrito por uma jovem, talentosa e promissora autora mexicana, Clyo Mendoza. O título é um aviso, nada é sutil nas mais de 200 páginas desse romance cáustico e bestial. Na abertura, uma criança é morta com um tiro na testa. É preciso cantar uma canção de ninar para seu cadáver, pois só assim seus músculos conseguirão amolecer e seus familiares poderão vesti-lo para o velório.
Depois de tal introdução, somos sugados por um raivoso turbilhão de violência, estupro, pobreza, psicoses e degeneração do ser humano em besta. Por que escrever sobre nossos instintos mais vis, nossa parcela mais escura, o legado mais amaldiçoado, o negrume de que somos feitos e de que toda vida em sociedade depende de que seja extirpado, arrancado dos indivíduos, punido exemplarmente? Por que ler sobre a monstruosidade se podemos admirar a genialidade e a beleza? Em uma menção livre ao famoso romance gótico lançado em 1886 pelo autor inglês Robert Louis Stevenson – escrevemos e lemos sobre as trevas por que O Médico e o Monstro são a mesma pessoa. Nós somos a besta e também a coleira que a enforca. Nós somos as trevas e também a luz que as dissipa. Nós somos a desgraça continua e incessante que arrasa o mundo, por todos os séculos, mas somos também a generosidade que partilha, o amor que fecunda, a esperança que nos impele a seguir em frente.
Há tragédia em todo lugar, todos os dias. Na literatura, ela nos reserva essa inigualável potência – a de nunca esquecermos de que todos nós somos feitos da matéria mais sórdida, ultrajante e vil, mas, ao mesmo tempo, somos o que há de mais sagrado e somos os únicos seres sobre a terra que fazem um pedido, de todo o coração, quando olham para as estrelas. A dualidade humana – nem nos contos de fadas conseguiremos nos esconder dela.