“Fui para a floresta porque desejava viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida, e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, e não, quando viesse a morrer, descobrir que não havia vivido.” Henry David Thoreau
A citação acima me acompanha e intriga desde a infância. Retirada do livro Walden, do escritor norte-americano Henry David Thoreau, a conheci sendo declamada pelo ator Robin Williams, no filme Sociedade dos Poetas Mortos. Apartar-se da civilização como forma de buscar a essência das coisas e, ao fazê-lo, procurar pelo âmago de si mesmo. Pulsando sob as palavras, a ideia de que o que somos está lá fora e precisa do movimento do corpo para ser descoberto. O que constrói a natureza também nos faz.
Ou, ainda, uma sutil sugestão de que somente sozinhos e libertados dos ditames da vida em sociedade podemos trazer à tona tudo aquilo de que verdadeiramente somos feitos.
A memória de Thoreau, em sua cabana, comungando com a floresta, ouvindo os pássaros e escrevendo seu livro às margens do lago Walden me veio à mente durante toda a leitura do quarto livro do ciclo um do Clube de Leitoras. Escute as Feras, de Nastassja Martin, nasceu do esforço de reconstrução de si da antropóloga que teve metade do rosto arrancado depois de ser atacada por um urso. Pesquisadora do subártico, a autora viajava para encontrar o povo Even que vive isolado na Sibéria, quando o ataque ocorreu. Desfigurada, Martin costura seu relato com passagens sobre o inverno implacável e os incontáveis procedimentos médicos. Refaz seus passos até o trágico encontro e tenta escrever um novo caminho, mesmo que essa recriada trilha a leve de volta para o cerne gelado e inóspito da vida selvagem. Depois do embate, Nastassja se considera parte urso e acredita que o animal – que também foi ferido por ela – agora carrega consigo uma parte de sua humanidade.
Durante milênios, fomos solapados pelas intempéries que não entendíamos e, muito menos, controlávamos. Devastados pela neve, pelo calor extremo, pela vegetação traiçoeira, pelos rios caudalosos, pelas tempestades arrasadoras e pelas feras.
Desde a descoberta do fogo e a invenção da roda, almejamos o domínio sobre o incontrolável e a proteção contra o que nos destrói.
Ainda assim, mesmo com a tecnologia nos entregando as condições mais propícias para nossa existência, há aqueles que perseguem o fascínio pelo paraíso perdido. Por nossa parcela selvagem que se tornou inalcançável. Pelo rugido longínquo que persiste em sussurrar algo de ancestral – aquilo que perdemos quando viramos o jogo contra a natureza. Há aqueles entre nós que seguem escutando as feras, mesmo que falhem em traduzir aos surdos o que, de fato, elas têm a nos dizer.
Thoreau e Nastassja entraram na floresta porque queriam encontrar a essência da vida. Porque queriam enfrentar os fatos essenciais da vida. Porque não queriam, na velhice, descobrir que não viveram. Em seu livro, Thoreau conta sobre liberdade e redenção. Em sua história, Nastassja permanece assombrada pelos rugidos indômitos. Ao testar-se, Thoreau lapidou suas forças e Nastassja quase encontrou seu próprio fim. A mim, leitora de ambos, resta o respeito distante pela floresta e seus seres – não apoio sua devastação, mas aprecio profundamente a capacidade humana desenvolvida para contê-la.
Não sei dizer se compartilhamos nossa essência com a natureza. Se Shakespeare estava certo e somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos, quem sabe Thoreau sonhava lago e Nastassja encontrou no coração selvagem a matéria insondável de que são feitos seus próprios pesadelos.