“Oh, utilidade inesperada do que é inútil!”
Victor Hugo, Os miseráveis
Há seis meses, iniciamos nosso Clube de Leitoras. Em janeiro desse ano, organizei uma lista com os livros que seriam lidos durante cada mês e, para a escolha das obras, decidi que seria encantador passearmos por diferentes gêneros literários.
Somos, todos nós, seres de hábitos e de autoproteção – dificilmente nos expomos a novas experiências de bom grado e de coração aberto – por isso, como leitores, muitos de nós tendemos a permanecer na companhia de nossos autores e autoras mais queridos e de sempre escolher livros com estilos e gêneros que já gostamos e com os quais nos identificamos.
Não pretendo fazer uma crítica a tal comportamento, apenas uma observação curiosa. Assim, desde o primeiro livro que lemos em grupo, passamos por um ensaio, um clássico da literatura infanto-juvenil, um romance, e um conto. Em minha intenção, todos eles livros-provocação. Livros-convite. Livros que, uma vez abertos, iniciaram um caminho não percorrido. Livros inesperados. Em nosso quinto e penúltimo encontro desse primeiro ciclo, nos encontramos com a poesia.
Entre todos os livros que escolhi, inserir um livro de poemas nessa proposta para o clube me fez refletir bastante. Apesar de me escapar o porquê, entre os muitos gêneros e estilos de livros que existem, me parece que, pelo menos atualmente, a poesia é o menos popular. Refleti sobre a real possibilidade de esse ser um livro que não despertasse o interesse das participantes do grupo, mas decidi insistir. Sou apaixonada por poesia e, assim, deixando de lado a praticidade, fui guiada pela emoção: Viagem, de Cecília Meireles, lançado em 1937 guarda alguns dos poemas que mais amo e foi por isso que ele passou a fazer parte desse nosso projeto.
Mas, afinal, para que serve a poesia?
Não, não quero perguntar sobre para que serve a literatura (ampliando, assim, a abrangência dessa indagação); ou, ainda, perguntar para que serve a leitura, ou os livros, já que, feita dessa forma, facilmente chegaremos às respostas mecânicas, repetidas e irrefletidas a que tanto estamos acostumados: para aprendermos, para “termos cultura”, para sermos inteligentes, para conseguirmos bons empregos, para sermos pessoas “melhores”. Apenas os indivíduos de personalidade boçal e opiniões obtusas se arriscam a dizer, pelo menos em público, que livros não são relevantes, que são desnecessários. A importância da “leitura” e do “conhecimento” é cotidianamente defendida e, superficialmente, incentivada. Mesmo que, como sabemos, esse seja um discurso que não se vê facilmente colocado em prática. Em resumo: a leitura, de forma abrangente, sempre é vista como um hábito admirável, porém, quase que unanimemente, seu valor só é percebido como um meio para chegarmos a algum lugar ou para conseguirmos alguma coisa através desse “esforço”, dessa “dedicação”. Ou seja: a leitura que apreciamos é aquela que é considerada útil. Portanto, novamente, a pergunta que abre esse parágrafo: e para que serve a poesia?
A poesia não serve para nada e, por isso mesmo, ela é imprescindível. A poesia não é útil pelo mesmo motivo que as máquinas não sangram e não sofrem: porque elas não foram feitas para isso.
Coisas são construídas para desempenharem uma ou muitas funções específicas e, quando param de atender às nossas necessidades, são consertadas ou descartadas. Quando muito, tem suas peças reutilizadas. Sem cumprir sua tarefa, uma máquina ou um instrumento se torna obsoleto ou inútil. A poesia é a escrita que não foi incorporada à lógica utilitarista, ao culto da posse, às lógicas de mercado, ao ciclo enlouquecedor de produção e consumo rápidos e desgastantes. “Especialmente nos momentos de crise econômica, quando as tentações do utilitarismo e do egoísmo mais sinistro parecem ser a única estrela e a única tábua de salvação, é preciso compreender que exatamente aquelas atividades que não servem para nada podem nos ajudar a escapar da prisão, a salvar-nos da asfixia, a transformar uma vida superficial, uma não vida, numa vida fluida e dinâmica, numa vida orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas” – escreveu o filósofo italiano Nuccio Ordine.
Os mais singelos, inocentes e sutis atos e gestos da nossa composição humana estão sendo transformados em meios que podem ser vistos como aprimoramento das nossas capacidades produtivas. Meditar é sublime, mas, a cada dia mais, é visto como um meio para melhorar nossa concentração e nos fazer mais focados e, portanto, úteis. Dançar é desenhar com o corpo, é desafiar os elementos que nos compõe e circundam, é seduzir e hipnotizar, mas todos os dias se torna cada vez menos uma expressão criativa e criadora e cada vez mais uma reprodução competitiva, repetida, mecânica e sem alma. Entretenimento pueril e tão abundante quanto irrelevante. Não só a poesia, mas tudo aquilo que se escreve, não precisa e não deve se adequar aos ditames do capitalismo tardio. A poesia – e toda a literatura – podem ser denunciantes dos absurdos e dos homens cruéis. Foram, são e sempre serão arautos das boas novas e das mudanças vindouras. São críticas e observadoras obstinadas, são fonte de inesgotável pesquisa pretérita para entendimento presente, mas, ainda assim, não são essas a sua utilidade, mesmo que todos esses papéis que desempenham sejam louváveis e necessários.
Que deixemos perto de nós todas as coisas inúteis e fervorosamente indispensáveis. Porque bebemos água pela necessidade de nos hidratarmos, mas bebemos vinho pela desnecessária embriaguês.
Porque pagamos contas pela obrigatória manutenção da vida prática, mas amamos pela impossibilidade de suportarmos uma vida sem paixão. Porque estudamos para aprendermos e entendermos os mecanismos e meandros do mundo do qual somos parte, mas lemos poesia pela fundamental emergência de extrairmos de uma vida efêmera e sem sentido a sua mais humana e profunda promessa de eternidade. “Mas o que fica – escreveu o poeta alemão Hölderlin – os poetas o fundam.”