Você gosta de receber livros de presente? Gosta de presentear com livros? Pois esse é um hábito que, felizmente, eu cultivo há muitos anos e que, mais felizmente ainda, tenho a alegria de ter pessoas na minha vida que também o têm.
Entregar um livro de presente para um amigo é fazer daquelas palavras todas que estão no papel um pouco suas, um pouco também de quem escolheu aquele livro em especial – entre os tantos que existem – e o elegeu como representante de um momento singelo e bonito. Presenteador e livro, juntos, como testemunhas que observam o momento em que uma mensagem dentro de uma garrafa aporta nas areias de uma praia – depois de tanto viajar em silêncio pelas águas – e que aguardam, ansiosamente, pela descoberta da mensagem escondida. Quem escolhe um livro de presente e a própria obra escolhida se vestem de arautos daquilo que se considera necessário e imprescindível que seja lido, daquilo que esperamos que se torne uma parte orgânica da pessoa que foi presenteada: as páginas, uma vez tocadas pelos olhos, são levadas pelas sinapses do sistema nervoso até o nosso cérebro e, sendo interpretadas e decodificadas e transformadas em sentido e pensamento serão, então, indissoluvelmente misturadas às nossas memórias e emoções. Se essa é a forma como nos construímos, não só a partir dos livros, mas de todos os estímulos que recebemos durante a vida, como podemos não dizer que a literatura que recebemos passa a ser, biologicamente, parte de nós mesmos? E se esse livro que receberemos em nosso corpo – feito as descargas de eletricidade que correm invisíveis dentro dos fios das nossas e de todas as casas – foi um presente, primeiro, do autor ou autora e, segundo, de quem nos escolheu para presentear, não estaremos, então, ligados todos nós por esses disparos elétricos dentro de fios invisíveis – mãos, dedos, olhos, pálpebras, veias, neurônios, massa cinzenta, poros, lábios, saliva e lágrimas – que partem de dentro de nós, usam as páginas como condutores e que, finalmente, retornam para o nosso interior, o seio de toda humana força motriz e auto-renovadora?
Quais são as partes do corpo que usamos para ler um livro? Eu leio, primeiramente, com os olhos, enquanto um deficiente visual lê com as mãos. Eu leio com os meus ouvidos, enquanto escuto as frases escritas serem vocalizadas, dentro da minha cabeça, com as vozes das pessoas cujos afetos que tenho por elas me remetem às falas dos personagens e aos pensamentos do autor. Eu leio com os dedos na boca, enquanto arranco tiras das minhas unhas, enquanto outros balançarão, ritmicamente, os pés que se esfregam um no outro. Eu leio com a barriga vazia – não consigo me concentrar para ler depois de ter feito alguma refeição. Outros leem comendo biscoitos. Outros sonham com o que leram. Outros comem o que está nos livros e os deixam retornar à superfície do papel em forma de lágrimas. Somos corpos que leem. Somos corpos que recebem, por inteiro, esse presente que é deixar outras pessoas passearem por baixo da nossa pele e por dentro dos nossos sentidos e sensações.
As letras, as palavras, as páginas, os livros, os escritores dos livros, os que nos presentearam com livros: eles são a alma do mundo que acolhemos em nosso corpo e permitimos que se sintam em casa.
Um hábito que cultivamos, em nosso clube, é comprarmos livros para trocarmos como presentes. Um hábito que cultivo, há muitos anos, é sempre deixar nos livros que entrego uma dedicatória nas primeiras páginas. As dedicatórias marcando as páginas com a minha caligrafia, feito as tatuagens que gravamos sobre a pele e que são marcas e símbolos de quem somos, mas, sobretudo, mensagens daquilo que escolhemos ser. Livro é presente que leva a gente dentro dele e deixa tudo isso se fazer de parte intangível e inexplicável de outra pessoa. Trocamos livros. Tocamos pessoas. Somos palavras. Formamos os motivos invisíveis e os motores sagrados que mantém a vida em prumo e os ritos em curso. É impossível que a literatura não nos mude, porque somos feitos da mesmíssima substância: a imaginação humana, demasiada humana. A leitura é, silenciosamente, o doce momento em que provamos o gosto e que sentimos no peito, exatamente, aquilo que somos. A leitura é, preciosamente, o encontro palpável daquilo que acreditamos que não pode ser transposto: os limites entre o eu e o mundo.
A leitura é, encantadoramente, a fôrma abstrata daquilo que sondamos e sentimos que podemos alcançar: que só seremos nós mesmos a partir da aproximação poética com tudo e que com todos que não somos, mas que, belíssima e artisticamente, também nos constrói.