Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que a vi. Preta, cabelo crespo, roupa surrada, empoeirada e, mesmo seu rosto sendo de plástico, refletia um olhar de rejeição, de mal vista, de sofrimento. Não por ser inútil, mas por não ter nenhuma oportunidade de mostrar quem é.
Enxerguei-me nela. Sua simplicidade, sua individualidade e, até mesmo, sua raridade tomaram conta de mim. Essa mesma raridade se chocou contra a minha realidade. Negra, menina, filha de lavradores. Seria preciso trabalho extra durante dois finais de semanas para adquiri-la. Mas, assim foi feito. Pois além de um desejo de criança, ela se tornou uma referência identitária para uma menina negra.
Uma simples boneca nos faz refletir sobre o espaço da mulher negra na sociedade. Quantas atrizes, protagonistas e bonecas negras vemos representadas na cultura popular brasileira, mesmo em um país formado por muitas etnias e culturas? Realmente, a simbologia deste brinquedo nos faz refletir sobre uma sociedade que prega a igualdade, quando se deveria buscar a equidade, agindo na individualidade.
Pensando positivamente, esse humilde presente transformou a garota. Pois, na Boneca Rebeca, encontrou o seu estilo de roupa, bijuterias, penteados e, principalmente, a possibilidade de ser feliz apesar das dores sentidas na pele.
Hoje, negra, mulher e lavradora, aquela menina se tornou adulta. Há pouco tempo, ainda não entendia que não é preciso assumir verbalmente ou conflituosamente a causa para fazer a diferença. Assumindo seu estilo próprio, sua personalidade forte e, melhor ainda, criando sua identidade, ela, assim como sua boneca, mudam e transformam a vida de outras.
É interessante que, quando usa mais de uma sombra nos olhos, lhe digam: “nossa! Está assumindo sua ancestralidade!”. Quando usa brincos temáticos da cultura afro-brasileira, puxam assuntos sobre empoderamento, antirracismo e letramento racial sem nunca a terem visto. Da mesma forma, quando usa tranças ou solta seu cabelo crespo o olhar recebido é de admiração. Este foi um aprendizado recebido da boneca, que mesmo inanimada contribuiu para a construção de uma sociedade melhor. Lógico, pensando que, se eu mudar ao menos uma pessoa, estarei fazendo mais do que se mudasse nenhuma.
Boneca Rebeca, eu a guardarei eternamente e quando você não mais existir, seus ensinamentos estarão gravados para a eternidade.
Sobre a Autora: Sou mulher, negra, da roça, filha de lavradores, antirracista, professora, produtora cultural e escritora. Defenderei eternamente a causa daqueles que mais precisam.