Jennifer bateu o ponto naquele dia com um aperto diferente no peito. Decidiu não ignorar o sentimento e lidar com aquele plantão com o dobro da dedicação que geralmente dispõe aos casos que passam por ela. Sendo uma das únicas médicas legistas da cidade, a mulher era a responsável por todos os casos que envolviam violência, com vítimas fatais ou não. Passou na sala de funcionários, trocando o casaco que vestia naquela noite fria por seu jaleco branco que trazia seu nome e sobrenome bordados no peito. Horas depois, enquanto terminava de fechar um senhor que havia sido atropelado, o aperto no peito foi sentido novamente no mesmo instante que um de seus companheiros de trabalho bateu à sua porta: uma nova vítima estava a caminho.
Assentindo, Jennifer terminou bem a tempo o que fazia, e, jogando as luvas que usava na lixeira ao lado da porta, atravessou o corredor até a sala de corpo de delito, encontrando a delegada da delegacia da mulher, que só aparecia por ali num tipo de ocasião: estupro de vulnerável. Suspirou, sentindo o incômodo em sua caixa torácica se intensificar pela terceira vez em poucas horas. Entrou na sala, a vítima estava na maca, sentada de costas para si, já vestida com o avental de pano verde que o Serviço Médico Legal disponibiliza. Durante poucos minutos, a médica preparou a bandeja de utensílios que usaria com a vítima e, em seguida, se aproximou da figura trêmula, encarando-a de frente pela primeira vez e entendendo o motivo do aperto tão frequente em seu peito.
Júlia, sua meia-irmã mais nova, era a vítima daquela noite. Com lágrimas nos olhos e o coração batendo forte, Jennifer se arrependia de ter permanecido calada, durante tantos anos, a cada palavra que ouvia sair da boca da adolescente. Enquanto realizava os procedimentos, flashes da infância e adolescência povoavam sua cabeça. O medo que não acreditassem, dos julgamentos, de ser castigada, de ser exposta à impunidade, todos eles foram ofuscados pela dor de ter deixado sua irmã passar pelo mesmo inferno, dores e traumas que sofrera. Seu trauma a fez virar médica legista para poder fazer justiça. E agora, ela faria justiça não só por ela, mas também por sua irmã. Ao terminar os procedimentos, Jennifer abraçou Júlia e deixou que a caçula colocasse pra fora toda dor em forma das lágrimas que molhavam seu jaleco. Jennifer não podia prometer muito, mas de uma coisa tinha certeza: colocaria o responsável pela dor de ambas na cadeia, como deveria ter feito anos atrás. E dessa vez, o fato de ser o pai das duas não seria um empecilho.