“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.” Em 2000, Caetano Veloso transformou trechos de Minha Formação, autobiografia que Joaquim Nabuco publicou em 1900, na letra da canção acima, chamada Noites do Norte, que integra o disco de mesmo nome.
“Quero que as pessoas nos vejam como nunca fomos vistas antes, como realmente somos. Porque eu não acho que as pessoas nos vejam.” Disse a atriz e produtora norte americana Viola Davis, que estrela o filme A Mulher Rei. Durante pouco mais de duas horas, somos tragados por uma história de potência sem precedentes no cinema estadunidense, porque a tela é inteiramente dominada pelas Agojie – as implacáveis guerreiras que integravam o exército do reino africano de Daomé entre o séculos 17 e 19. Uma rápida pesquisa na internet sobre o filme e uma manchete de renomado site de cinema confirma toda a urgência e absoluta necessidade dessa obra: segundo eles, o filme exalta “a força e a doçura das mulheres negras” – reforçando os estereótipos de feminilidade impostos às mulheres durante toda a história da humanidade e reduzindo a magnitude de um marco do cinema ocidental à uma mesquinha “celebração” das mulheres negras.
A mulher rei não celebra, demarca. A mulher rei não é forte, é soberana.
A mulher rei não é doce, é uma mulher preta, complexa, inteira em toda sua humanidade e trajetória de violências sofridas e atualizadas para o século 21 e em toda sua inteligência, autonomia e dimensões que são forçosamente apagadas e esquecidas. Se há um compromisso com a atual virada de maré que se apresenta, em nosso país, nosso primeiro e decisivo passo em direção a reestruturação da nossa identidade é a admissão completa e sem subterfúgios de que o Brasil não apenas nasceu da escravidão, mas passou de colônia a país apoiando-se ainda mais fortemente sobre os corpos, a inteligência e a sensibilidade dos negros escravizados e seus descendentes. A lógica escravista nos molda e assombra até os dias de hoje.
O sucesso e importância de A Mulher Rei extrapolam quaisquer linhas territoriais – pertence ao mundo. Porém, a audiência brasileira é simbólica porque somos veridicamente mostrados pela história contada. Durante a trama, o público é apresentado a dois comerciantes de escravos brasileiros de ascendência portuguesa, que faziam o comércio da África para o Brasil. Desde a invasão dos portugueses, em 1500, foi a escravidão que gerou todas as riquezas do nosso país. Todo setor da economia contava com o trabalho escravo. E os descendentes das famílias escravagistas gozam das riquezas acumuladas nesse período até hoje.
Estima-se que 4,86 milhões de escravos foram desembarcados no território brasileiro entre 1501 e 1900 – mais do que em qualquer outro destino.
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O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, que durou mais de 300 anos. E depois de 130 anos da abolição da escravatura, vivemos uma amnésia coletiva, conveniente e conivente: somos o país do quarto de empregada, da população carcerária majoritariamente preta, da guerra às drogas que tem o preto, pobre e periférico como alvo principal.
A Mulher Rei é potência ao juntar as duas pontas mais cruéis que fundaram a nossa nação: a escravidão e a misoginia. Ver a mulher preta como protagonista altiva e admirável, com seu real papel dentro da história, da política, da construção cultural é rejeitarmos o lugar de subalternidade e exploração a que foram atiradas por séculos. Um lugar de desumanidade que foi plantado em nosso país e que produz frutos podres em profusão até o século presente.
A sétima arte é poderosa porque tanto nos conta a história que assistimos na tela como reflete a realidade que torna possível que um filme como esse seja escrito, produzido, filmado e lançado.
Mesmo que muitos esperneiem e clamem pela relativização e manutenção do passado cruel e ultrajante, muitos também são aqueles que olham para trás para não esquecer, para o presente exigindo justiça e para um futuro construído pela memória, pela responsabilização devida e, principalmente, pela redistribuição das riquezas construídas pelos negros sequestrados em África e explorados no Brasil e de um país que lhes ofereça pleno direito à cidadania e à humanidade que foram arrancados de seus ancestrais.