Marighella – 2019, dirigido por Wagner Moura, ainda não conseguiu estrear no Brasil. O filme, que já coleciona boas críticas ao redor do mundo, segue no limbo burocrático da Ancine, mesmo um ano e meio após sua estreia.
Ao ler reportagens na internet, uma palavra tem sido evitada de ser usada aberta e diretamente: censura. O que a agência nacional de cinema fala, as produtoras desmentem. O que o diretor insinua, os órgãos do governo minimizam. Fato é que nessa conversa indireta, em que ninguém sabe, ninguém conhece, ninguém viu, o filme recebeu uma nova possível data de estreia por aqui – novembro de 2021. Porém, até lá, segue sendo uma história abafada e preterida – exatamente como foi feito no Brasil, ao longo de décadas, com o nome, a história, a luta e o legado do homem que da nome ao filme: Carlos Marighella.
No último domingo, dia nove de maio, circulou em uma rede social uma cópia não autorizada do filme. Menos de 48 horas depois de postado, o arquivo com o vídeo foi retirado do ar. Em várias cenas do filme, que se passa em 1968 no Brasil, quatro anos após o golpe militar, tanto o personagem principal, quanto seus companheiros e integrantes da Aliança Libertadora Nacional, mencionam a pesada censura imposta, pelo governo, aos meios de comunicação.
“Esse silêncio todo me atordoa, e atordoado eu permaneço atento” – cantava Chico Buarque em sua canção. Como isso era possível? Como conviver, em silêncio, com tanta truculência, violência e violação de direitos civis? Os que apoiavam Marighella acreditavam no poder da mídia, da informação, para obterem o apoio do povo brasileiro e, assim, se insurgirem contra o estado ditatorial. Acreditavam que as pessoas, uma vez cientes e conscientes do que acontecia com aqueles que discordavam do governo, uma vez que suas vendas fossem retiradas e que pudessem ver, ler, assistir e ouvir todas aquelas histórias aterradoras, uma vez informadas pelas notícias que pudessem circular livremente, uma revolução poderia ser dada como certa. Assistir essa história, em 2021, me leva a pensar que, talvez, as coisas não aconteceriam bem assim.
Duas outras músicas me vem à mente, enquanto reflito sobre a história contada pelo filme: a famosa letra de John Lennon, que diz: power to the people ( poder para o povo) e a que foi escrita muitos anos depois, pela cantora Russa, radicada nos Estados Unidos, Regina Spektor: power to the people, we don’t want it, we want pleasure ( poder para o povo, nós não queremos poder, queremos prazer). O espírito indômito que muitos brasileiros carregavam, durante os anos da ditadura, talvez não fosse tão numeroso e facilmente encontrado na população, como esperavam esses revolucionários. No imaginário deles e, talvez, ainda mais forte em sua vontade, acreditavam que uma vez que os fatos e a verdade estivessem disponíveis e acessíveis, uma vez que fossem noticiados em pleno jornal do horário nobre, a população se atiraria a eles como seres sedentos por justiça e liberdade. Nunca saberemos, mas suspeito fortemente que não teria acontecido. Assim como a exibição ilegal desse filme com alto teor político e revolucionário não causou nenhuma grande repercussão, no Brasil de 2021, assim como, muito provavelmente, sua estreia nos cinemas não vai gerar grandes filas e comoção popular. Assim como sua possível censura permanece um assunto menor e desimportante aos olhos da esmagadora maioria da população que quer da vida o prazer e não a liberdade.
Vivemos, hoje, à sombra do silêncio que pairava nas décadas de 60 e 70, em nosso país. Muitos dos filhos e netos daqueles que viveram sob o regime militar continuam entoando a canção triste e delusional de que nada de violento e autoritário, realmente, aconteceu. A meu ver, quando repetem esse discurso, tal como um disco arranhado e irritante, expressam pura e simplesmente sua vontade, um desejo enraizado que repete e remete às muitas gerações que vieram antes: eu não quero que isso seja verdade, e, contra um desejo, os fatos são minados em sua força persuasiva.
No Brasil de ontem e no Brasil de hoje, para muitas pessoas, a censura foi e é experimentada muito mais como um alento e uma proteção do que como uma violação de direitos.
Marighella e os seus, que sonhavam em libertar e acordar o povo, ainda poderiam ter vivido e lutado muito, de outras formas, se tivessem refletido sobre a possibilidade frustrante e verdadeira de que o povo, quase que em sua maioria, prefere e escolhe continuar dormindo – deitado e de olhos fortemente cerrados, eternamente, e em berço esplêndido. O poder popular, a justiça e a liberdade, que Marighella queria distribuir via informação, pode nunca ter sequer tocado os corações e as mentes de muitos brasileiros. Só o prazer os salva, aos seus próprios olhos. Ou condena, aos poucos e raros olhos politizados e conscientes. Mas que poder tem um revolucionário para salvar alguém que não quer ser salvo? Muito provavelmente, nenhum.