Sou do tempo dos livrinhos infantis com histórias e fábulas clássicas, cujas ilustrações eram cenários fotografados com bonecos. Não sei qual era a editora, infelizmente. Eu amava aquela atmosfera palpável, o corpo de linha e feltro dos personagens, e me marcou muito a baleia de pano, onde foi parar o Jonas, numa coleção com inspiração bíblica. Também li A lebre e a tartaruga, O cão e a raposa, e os contos clássicos de Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel. Entre todos os livros, um deles não me agradava, porque eu não conseguia entendê-lo, mesmo com repetidas explicações dos adultos: A raposa e as uvas.
As uvas eram cachos de crochê de cor lilás, lindíssimos. O cenário era um bosque folhoso e florido, o tronco das árvores parecia de papel madeira, mas, talvez, todas essas minúcias sejam detalhes que a memória e a nostalgia adicionaram aos retratos estampados nas páginas. Porém, eu não simpatizava com a raposa porque puseram na coitada um tecido que parecia um tapete despenteado, uns olhos saltados das órbitas e uma língua pontuda e vermelha pendurada entre os dentes. Eu a achava feia e assustadora.
Talvez, na tentativa de expressar o desejo do animal pelas uvas, a retrataram assim. Eu, criança, não a entendia como a imagem do desejo, me parecia, na verdade, raivosa ou louca. Imagino que, por isso, tive tanta dificuldade em entender a história cujo desfecho sempre me parecia desengonçado. Tantas vezes, eu me indagava se meu exemplar não estava com páginas faltando. Por causa da aparência do animal, a fábula da Raposa e das uvas marcou minha infância, não como uma preferida, mas sim preterida, de sentido frouxo, olhos amalucados e língua de pano. Só das uvas eu gostava, seus singelos pontos de linha numa cor que eu quase nunca via nos livros.
Acho curioso que, mesmo depois de adulta, tenho certa dificuldade de entender pessoas que “desdenham o que querem comprar.” Para os não familiarizados com a fábula, um breve resumo: a raposa não consegue comer as uvas, pois estas estavam num galho alto que ela não alcançava. Por isso, deixa o bosque ofendida e envergonhada, espalhando aos quatros cantos que o suculento cacho, que há pouco despertara seu interesse, estava, na verdade, verde. Moral da história (como apresentada em toda fábula) ao não conseguir o que queria, desdenhou de seu objeto de desejo.
Tenho temperamento colérico. Sou mais direta e objetiva do que deveria, dada a reações bruscas e a confrontar o que me desagrada. Tanto minha alegria, quanto minha raiva, frequente, admito, saltam com facilidade aos olhos que me observam. Mais uma conjectura: talvez, seja esse o motivo de eu ter lido na raposa despenteada uma espécie de ira e insanidade que não estavam lá. Pois vejam, se me encontro no lugar da raposa, em situações da vida, minha atitude seria socar a árvore até caírem as benditas uvas (coléricos tendem à obstinação). Porém, nem a persistência, muito menos a força, nos garantem conseguir tudo o que queremos e, nesses momentos, esta raposa que vos escreve chora uma tristeza indisfarçável. Desde criança, por me colocar em muitas guerras diminutas e desnecessárias, aprendi a perder, a encontrar meu lugar, a me frustrar e acolher que não se pode ter ou ser tudo.
Volto aos dissimulados, como a personagem principal da fábula. Aos que desdenham o objeto de seu apreço. Aos que criticam o que queriam ter. Aos que enxovalham aqueles que queriam ser. Aos que se contorcem sem conseguir aceitar seus limites. Aos que expõem, em plena luz dos bosques da vida, seu recalque de olhos saltados, cabelos alvoroçados e língua pendendo da boca. Ah! Quantas vezes ainda me encontrarei com essas raposas, tão famintas, quanto frágeis, e não as reconhecerei? Quantas vezes ainda, elas me confundirão com seus discursos, que tomarei como verdadeiros, porque sou organicamente tão incapaz de esconder o que quero? Talvez algumas. Talvez muitas. Mas, mesmo que assim for, a moral da minha história será esta: felizes os que bancam seus desejos, realizados e irrealizáveis, pois seu júbilo, com ou sem uvas, é a força de seu caráter. É a coerência entre suas palavras e seu coração.