Em tempos não tão distantes, a pandemia nos fechou em casa; o medo e a incerteza do futuro nos rondavam. Tivemos que aprender a fazer coisas que não imaginávamos e, entre um banho e outro ou nas compras do supermercado, tentávamos encontrar um hobby que acalentasse a angustia daquele tempo. Eu tentei fazer pão, mas foi estudando vinho que achei um bom refúgio. Talvez por ser mais fácil ouvir o “poc” da rolha do que sovar uma massa…
Abrir uma garrafa de vinho é como desembrulhar uma pequena caixinha de histórias. Ao beber, gosto de pensar que cada garrafa traz consigo um pouco dos que trabalharam para que aquele líquido estivesse ali, aguardando o momento certo para ser apreciado. Imagino as videiras balançando ao vento, o sol forte nas espaldeiras e latadas, as mãos calejadas dos trabalhadores que, com paciência e dedicação, colheram cada cacho de uva, sabendo que ali, na simplicidade de um fruto, estava o início de algo especial. Certamente um trabalho duro, lento e também cansativo, digno de todo mérito e respeito exalados nos aromas que sentimos no tombar da rolha.
Há uma delicadeza quase poética na forma como os vinhateiros, com sua sensibilidade aguçada, acompanham cada etapa da produção. Numa viagem de férias, conheci um jovem enólogo do Sul e era possível ver um dia ensolarado em seus olhos, enquanto explicava sua criação engarrafada. Os vejo, de certo modo, como escritores dessas histórias líquidas, narrando com aromas e sabores os terroirs e tradições de cada região.
Beber com tempo, beber o tempo, esse artesão invisível, que também deixa suas marcas. Me sirvo um gole e também penso no destino de uma garrafa, imagino como ela será recebida: quem a abrirá, em que ocasião, quais conversas e risadas ela testemunhará. Sirvo o segundo gole, agito a taça e sinto os aromas. Olho com minúcia os detalhes da rolha e me lembro que as cascas de cortiça contam histórias de paciência e espera, enquanto as tampas de screw cap refletem a pressa de uma geração que quer viver o agora, afoita para, como o gênio, saltar da garrafa.
Os vinhos jovens trazem a energia vibrante de quem tem a vida inteira pela frente, ansiosos para se “volatizar” ao mundo. Mas e os envelhecidos? Ah… esses são como velhos sábios, amadurecidos em barris de carvalho, onde o tempo faz seu trabalho silencioso. Talvez as mãos que colheram aquelas uvas já não existam mais, mas o vinho continua a contar sua história, agora com notas mais profundas, como memórias guardadas ao longo de décadas.
Beber vinho não é um ato misterioso, tampouco elitista. Ele tem seu charme, é verdade, mas o verdadeiro encanto está em sua versatilidade. O vinho está lá, esperando para celebrar uma ocasião especial, para consolar em tempos difíceis, ou, simplesmente, para acompanhar uma boa conversa, ao fim de um dia comum. Sempre há uma taça esperando para ser preenchida, carregando consigo não só o sabor, mas a história, a alma de tudo o que fez aquela garrafa existir. As minhas taças sempre são acompanhadas de boas companhias, amigos, até mesmo a solidão se torna mais agradável. Um brinde a tantas histórias e aos que dividem suas taças conosco.