Na semana passada, escrevi sobre a animação A Ganha-pão – filme que retrata a vida das mulheres e das crianças que vivem sob o domínio do Talibã, no Afeganistão. O país continua vivendo dias de terror, em uma guerra que escala e não se consegue prever seus contornos ou sua duração. A maioria dos filmes de guerra retrata a trajetória dos homens em combate – seus sofrimentos, perdas, dores e violências – tanto aquelas que eles exercem sobre os chamados inimigos, quanto todas as que eles mesmos são vítimas. Filmes que abordam as guerras sob a ótica da política e disputas de poder também escrutinam as relações masculinas em gabinetes fechados, tribunais militares e nos salões dos chefes de estado. Glória feita de sangue, de Kubrick, O resgate do soldado Ryan, de Spielberg, Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla três filmes consagrados como obras primas do cinema – cada um à sua maneira, estilo e tempo, mostraram a face de horror dos maiores conflitos bélicos do século 20: a primeira e a segunda guerra mundial e a guerra do Vietnã.
Durante muitos anos, filmes de guerra me intrigavam e comoviam muitíssimo; pelo seu poder de pintar um retrato sem retoques da banalidade do mal e de tudo que o ser humano é capaz de fazer quando levado ao seu extremo – em busca da manutenção do poder ou pelo desespero de salvar sua própria vida.
Mas, em um dado momento, comecei a me questionar e uma pergunta me veio à mente – quando ela surgiu, me pareceu tão óbvia, mas, mesmo assim, admito que foi uma obviedade que me escapou durante muito tempo: onde estão os relatos sobre o que passam e sofrem as mulheres durante os anos de guerra? E foi doloroso perceber que na glória ou na dor, em seu ápice ou em seu declínio, na realidade ou na ficção – somos ignoradas e apagadas do palco da história e da vida.
O filme Milada, 2017 – disponível na Netflix – conta a história de Milada Horáková, uma grande política tcheca, julgada e condenada à morte pelo partido comunista sob falsas acusações de conspiração contra o regime e traição à pátria. Nascida no dia 25 de dezembro de 1901, em Praga, capital da República Tcheca, aos 17 anos, foi expulsa de sua escola por participar de uma manifestação contra a Primeira Guerra Mundial. Entre 1927 a 1940, Horáková trabalhou no departamento de assistência social, em sua cidade natal. Em 1939, Milada se tornou membro do movimento de resistência contra a ocupação alemã na Tchecoslováquia. Assim como seu marido, a ativista foi presa e interrogada pela Gestapo. Em 1940, foi enviada para o campo de concentração de Terezín, onde foi submetida ao trabalho forçado e às torturas físicas e psicológicas. Foi libertada em 1945, devido aos avanços das tropas aliadas e, após sua soltura, juntou-se à liderança do Partido Socialista Nacional Tchecoslovaco, recém-reconstituído. Porém, apenas em um espaço de cinco anos, Milada assistiu à ascensão do partido comunista em seu país – recusando-se a se mudar, foi presa e, após muitas sessões de tortura, submetida a um falso julgamento que condenou ela e outros cidadãos à morte.
Uma mulher que, tendo assistido aos horrores da primeira grande guerra quando tão jovem, tendo sobrevivido ao nazismo e aos campos de concentração alemães, foi morta pelo partido comunista que havia invadido e tomado o poder à força na República Tcheca. Uma mulher que nunca foi enviada com tropas armadas para os campos de batalha, cujas únicas armas eram a palavra, sua inteligência, sua preocupação com o serviço social e com as famílias de seu país que viviam assombradas pelas guerras passadas e ameaçadas pelas guerras futuras. Uma mulher cujo mais precioso legado deixado para sua única sua filha, Jana, só foi finalmente entregue a ela quarenta anos depois de sua morte, após a queda do regime comunista.
Milada Horáková lutou muitas guerras, mesmo sendo uma civil. Teve sua vida, sua obra e sua morte transpassadas pelos conflitos que demoliram a Europa, por anos a fio. Tornou-se para sua filha, suas netas que não conheceu, suas bisnetas e toda sua descendência a marca de uma mulher que viveu e morreu como uma combatente desarmada, porém incapaz de recuar frente ao seu dever.
Só existiu, nesse mundo, uma Milada Horáková – mas todas as mulheres que tiveram a infelicidade de viverem em tempos de guerra e em países envolvidos em batalhas nos legaram suas histórias, suas verdades e suas vidas. É absurdamente mandatório nos perguntarmos, sempre, em tempos de paz e em tempos de guerra: o que faziam, onde estavam, o que sentiam e como era a vida das mulheres? Quando tomamos conhecimento da real situação das mulheres e das crianças de um país – em qualquer período da história – é quando podemos ter a real noção daquilo que o ser humano é capaz de fazer.
A verdadeira barbárie, muitas vezes, se esconde muito longe dos homens, das trincheiras e do front de batalha – a pergunta deve ser, sempre, e as mulheres? Nessa guerra, nesse tempo, nesse país: o que aconteceu com as mulheres?