“Meu jardim é minha obra-prima mais bela”
Claude Monet
Há quem acredite que medimos nossa passagem sobre a terra comparando nossos feitos. Imaginemos uma conta simples: para cada ato de bondade, bravura, caridade e heroísmo, subtraímos as mentiras, as mesquinharias, trapaças e desvirtudes. Dos santos, abonamos as pequenas vicissitudes que não devem manchar seus anos pios e castos. Aos criminosos, que nos importam seus atos de bondade? A justiça, fria e de espada em punho, cabe a tarefa de pesar os corações e os atos. Aos juízes, reservado o poder de decidir a dosimetria de cada apenado.
Eis a visão dos homens: crime e castigo, vigilância e punição, bom comportamento e benesses.
Porém, como são vistos nossos atos sob o ponto de vista das plantas? Que lhes importam as tormentas humanas, quando espalhadas debaixo do sol, umedecidas pelo orvalho, adubadas pelos restos decompostos pelo solo? Amorais, ou melhor, supramorais, e libertadas da dicotomia bem versus mal, teriam as representantes do reino vegetal algo a pensar ou opinião a emitir acerca das mãos assassinas que as podavam e colhiam? Esse é o ponto de partida do livro A Visão das Plantas, de Djaimilia Pereira, segunda obra lida pelo Clube de Leitoras, nesse Ciclo Dois de 2023.
Celestino, o Capitão Jardineiro, velejou num navio negreiro entre três continentes: Europa, África e América do Sul. Decapitou mulheres e crianças, traficou escravos, torturou colonizados e colonizadores inimigos da Coroa Portuguesa. Anos de violência sem culpa, “carregava no peito uma planta, ao invés de um coração.” No fim da vida, de volta ao casarão decadente que herdou, dedicou-se religiosamente a cuidar do jardim. Enquanto enlouquece e definha, é vigiado de perto pelos habitantes entediados da região e o padre de sua paróquia. Quanto mais Celestino se aproxima da morte coroada de impunidade, mais vicejam suas rosas, as ameixas maduram no pomar e heras cobrem de verde os escombros do velho continente e da decadente sociedade portuguesa do final do século 19. Serão a velhice e a morte capazes de nos eximir de nossos crimes? Celestino não pagará por seus pecados?
Não deveriam as plantas murcharem em suas mãos, em respeito às incontáveis mortes de que ele se gabava? Ao fim, a moral é humana, demasiado humana. Assim como as leis e as injustiças. Assim como os significados, a culpa, a glória divina e o perdão.
Não sabemos até que ponto conseguimos nos aproximar da indiferença das plantas, de sua visão pragmática sobre a existência. Morto, Celestino deixou um rastro de cadáveres e flores. Juntou-se àqueles que assassinou e, em seus delírios sem arrependimento, foi recebido por eles com carinho e brandura. Aos olhos do pároco, o jardim do facínora despertava inveja e amargura. À sombra dos álamos que floresciam, folhas e frutos se refestelavam ao sol, refrescando-se com água, satisfeitos pelos minerais da terra. Indiferentes à marcha humana, seguiram perfumando o passeio público, oferecendo beleza e abundância aos vivos, sejam eles criminosos ou vítimas, crentes ou infiéis, admiráveis ou vis. Seguem enfeitando os mortos, sua última vestimenta, um lembrete de nosso retorno ao pó, vencedores verdes e silenciosos da tragédia diária que ignoram.