Todos temos histórias para contar.
A minha se passa em um armário. Mas, não é qualquer armário – até ele tem uma história – anterior a que eu tenho para contar.
Recordo… bem pequena, indo à casa da vovó e contemplando seu armário antigo, de madeira maciça, robusto, tons claros, quatro portas. Quando ela o abria, lá dentro moravam roupas bem antigas, acessórios de prata que ela guardava como tesouro, sutiãs que parecem ter sido feitos para avós, linhas de crochê e grosas de cigarro.
Conto isso com a impressão de que existe uma falha no relato. Tenho a ligeira impressão que ela guardava quase o mundo lá dentro, que eu poderia entrar nele, que descobriria um outro lugar mágico, secreto, escondido daquela rotina sufocante de ser uma criança nos anos 90.
Um guarda roupa que guarda toda uma vida. Guarda, hoje, outras duas vidas e roupas sempre desarrumadas. Se antes guardava um mundo e era organizado, metódico, cheio de manias, hoje é apenas um aglomerado de roupas que não se arrumam sozinhas e por isso se desorganizam coletivamente, devido à rotina pesada das vidas que o ocupam.
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Por muito tempo, não me lembrava da história desse tal armário ou, se preferirem, guarda roupa. Mas, outras duas vidas resolveram ocupá-lo e isso me chamou a atenção.
Amora e Lucy amam se esconder pela casa, ambas se estranham e ao mesmo tempo se completam com suas vontades e estranhezas que, na maioria das vezes, são estranhamente engraçadas. Elas possuem temperamentos completamente distintos, mas manias idênticas. Elas amam dormir no sofá de dia, a noite só dormem na cama, amam água de coco, capturar passarinhos – atitude que eu desprezo – comer porcarias, se esconder no closet e dormir nos armários. Não perdem a oportunidade, quando abrimos o histórico armário da vovó, de pular lá dentro e deitar na sapateira. Olham com olhos que parecem saber toda a história daquele móvel que está na família há décadas, mais décadas que a própria amora que já tem uma.
Elas não perdem tempo. Se abro uma das portas, rapidamente, pulam, cheiram tudo, como quem fala: deixa eu sentir um pouco dessas histórias! E deitam, olhando com olhos de quem parece saber que ali é um porto seguro registrado.
E, assim, sempre que elas repetem essas manias estranhas que as unem, mesmo sendo tão irritantemente diferentes, é nesse momento – nesse instante de um segundo – que elas me lembram que o mundo secreto dentro daquele armário ainda existe, que a saudade bate e eu posso me sentir novamente nos braços da minha avó.
