Você já parou para se perguntar quanto tempo dura um desastre? Por quantos anos o mundo viveu a segunda guerra mundial, por exemplo? Oficialmente, por seis anos: de 1939 até 1945. Porém, com o final da segunda guerra, os desdobramentos políticos instauraram a guerra fria – a tensão bélico-política entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética – que esticava suas salas de guerra para vários países que nada tinham diretamente a ver com o embate entre a ideologia capitalista norte americana e a ideologia comunista soviética.
Foi devido a essa tensão econômica, política e ideológica que vários países da América do Sul foram solapados por ditaduras financiadas pelos norte americanos, com o objetivo de não permitir que governos democraticamente eleitos se alinhassem à “ameaça comunista”.
Estamos em 2021 e, até hoje, esse “fantasma do comunismo” é exaustivamente usado para manobrar e manipular o emocional e, consequentemente, o voto da população brasileira. Então, pergunto novamente: quanto tempo dura um desastre? Por quantos anos perdura uma mancha lançada sobre o tecido social? Até onde chega uma ruptura – que, tantas vezes – pode ser tão profunda, que vai atingir as próprias bases daquilo que formamos juntos, enquanto cidadãos. Além da América do Sul, também o Afeganistão sofreu intervenções dos dois países que se antagonizaram, durante a guerra fria: após a URSS invadir o Afeganistão, os Estados Unidos armaram grupos radicais que eram opositores do governo instaurado sob influência soviética. E foi desse grupo extremista que, anos mais tarde, nasceria o Talibã. Estamos em 2021 e o Afeganistão vive uma guerra em curso que tem raízes tão antigas quanto as areias e cavernas de seu próprio deserto.
Estamos em 2021 e, no Brasil, novamente o fantasma do comunismo começa a sair de sua tumba inexistente para ditar os rumos da nossa próxima eleição. Tenho me perguntado, repetidamente, essa mesma pergunta: quanto tempo dura um desastre?
O filme Quanto Vale? – 2020, disponível na Netflix – conta uma história real, que se desenrolou durante anos, depois do ataque terrorista de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center e ao prédio do Pentágono, nos Estados Unidos. Enquanto assistia ao filme, me fiz várias vezes a pergunta que abre essa coluna: quanto tempo durou, para mim, esse desastre que completou, há algumas semanas, vinte anos? Me lembro perfeitamente do dia 11 de setembro de 2001 – de sair da escola, de assistir, pela televisão, à cobertura infindável sobre o acontecido, de falar sobre isso ao telefone com meus amigos, de ter ido a uma festa de aniversário, naquele mesmo dia, à noite, e de ter pensado e refletido sobre as vítimas durante toda a festa. Para mim, aquela tragédia tinha durado, no máximo, 12 horas, e segui com meus projetos e desejos adolescentes, levando comigo somente a memória de um dia trágico, porém distante. Agora, 20 anos depois, assistindo a esse filme, percebo que não.
Percebo que essa tragédia também me atinge, ainda que indiretamente, tantos anos depois. Porque esse foi mais um dos acontecimentos que abalaram e que desfizeram o mundo como um todo – o mundo, como todos nós o conhecíamos até o dia 10 de setembro de 2001, deixou de existir – para sempre.
E, mesmo que de forma muito sutil, não podemos negar que, se vivemos – enquanto sociedade – uma ruptura dessa magnitude, não somos e não podemos continuar a viver, nunca mais, da mesma forma.
Há mais de um ano, escrevo, semanalmente, essa coluna e essa será a primeira vez que vou sugerir, diretamente, que esse é um filme que deve ser assistido. As famílias das pessoas que morreram ou que ficaram com sequelas físicas e psicológicas daquele ataque são as protagonistas dessa história tão difícil de ser assistida, mas tão importante que seja conhecida e tornada relevante por cada um de nós. Os sobreviventes do 11 de setembro são incontáveis: são as mães que vivem até hoje sem seus filhos, são as crianças que, mesmo depois de 20 anos, ainda precisam lidar com a perda de um pai, são os maridos, esposas, amigos e conhecidos que não entraram em nenhum dos prédios atingidos naquele dia – mas que tiveram suas vidas e seu mundo modificados para sempre por algo que estava completamente fora de seu alcance e de seu controle ou escolha. Sei que, como eu, a grande maioria dos brasileiros aguarda, ansiosamente, pelo “fim da pandemia”. Pelo momento em que a população estará vacinada, que poderemos sair sem máscara, que retornaremos aos shows, estádios, festas, bares, abraços e viagens – livres da doença e assegurados do nosso direito de ir e vir sem o risco de infectarmos a nós mesmos e àqueles com quem convivemos.
Acredito que sim, chegará o dia em que a disseminação da doença estará sob controle – como aconteceu, felizmente, com tantas outras doenças ao longo das últimas décadas.
Porém, a verdade é que a pandemia de COVID 19 está sendo um desastre humanitário de alcance tão profundo – assim como foram, guardadas as devidas proporções e características -, a bomba de Hiroshima, a pandemia de gripe espanhola, os ataques de 11 de setembro, a ditadura de Pinochet, no Chile, o holocausto de judeus pelo nazismo, o massacre de palestinos pelos judeus. É ingênuo esperar pelo fim da pandemia – pois ela não terminará nunca. Ela teve um início, estamos vivendo seu meio e o que ela fez foi alterar e deixar suas marcas no mundo, na história e em cada um de nós, para sempre.
Talvez, a pergunta mais adequada que devemos nos fazer, a partir de 2021, seja: quanto tempo leva para aprendermos a viver com a memória e com o legado de um desastre? E essa não é o tipo de pergunta que se propõe a ser respondida com palavras, mas com o próprio curso e com os próprios desdobramentos das coisas e do valor que damos à vida.