Pequenos caixões de madeira se enfileiram sob vigília: as memórias mais antigas da nossa noite interna nos espreitam pelas frestas. Os cenários, feito teatro de sombras chinês, te escapam feito fumaça – desaparecem e se refazem, usando uma outra forma, mas carregando por trás de diferentes máscaras os mesmos medos. Os medos eternos – porque congelam o tempo. Os medos etéreos – perfeitos em sua habilidade de convencimento e persuasão. Os medos erráticos – nômades e vagabundos que te agarram no virar de uma esquina, no crepitar dos galhos e dos clichês.
O que nos assusta não mora lá fora: nossos piores sustos vêm sempre de dentro. Essa casa enorme e penumbrosa aonde, desde sempre e para sempre, viveremos sozinhos e cercados de reminiscências. Na tela, as imagens são somente as iscas, as visitas que, com mãos leves e pálidas, batem à porta e aguardam a nossa resposta: “há algo aí dentro, tão escondido e tão assustador, tão dolorido que não termina nunca de arder, tão entranhado no tecido epitelial que é impossível saber de onde veio e aonde está?” – nossa resposta é sempre inconsciente; a leve alfinetada na espinha nos avisa que já os deixamos entrar – e eles, sempre, se sentirão em casa.
Quartos, corredores, salões de jogos e de baile: um hotel inteiro para abrigar o que negligenciamos, o que omitimos, o que não ousamos sussurrar para nós mesmos, sozinhos e no escuro. O que não confessamos – nem mesmo sob a tortura de um monstro? Que se ficamos com muita fome, começamos a roer nossos próprios ossos, a mastigar as cartilagens do nosso próprio coração. Mas, sempre, viramos o rosto.
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É seu pai bêbado quem carregava um machado. É seu medo de saber que é igual a ele que te leva pela mão, até as garrafas. É o medo do seu pai que batia na sua mãe que te ferve as vísceras e te faz bater em mulher. É seu medo de morrer, de envelhecer, que te faz desejoso e comensal da juventude alheia. É seu medo de se saber culpado que te faz procurar ser punido. É seu pavor de ser comum e sem talentos especiais que te leva a perseguir e humilhar qualquer pessoa que se sinta confortável e realizada ao fazer o que faz.
O ranger de uma porta. Uma figura disforme nas sombras do quarto. Os galhos arranhando um céu pesado como o chumbo de que são feitos os remorsos e as culpas. Apenas senhas. Truques de mágica. O verdadeiro calabouço está em nós e, como almas penando em nosso palco/labirinto, primeiro escondemos e depois procuramos as chaves que nos trancam e nos encerram.
Tentar escapar do medo deixa a escuridão mais forte. É quando iluminamos que as sombras desaparecem.