Um ano depois do início da pandemia de COVID 19, em Março de 2020, estamos revivendo, em uma espécie de looping macabro, um mês de março de incertezas e isolamento social. Mais uma quarentena que só não se parece com a primeira porque, em termos gerais, estamos em uma situação muito pior. Há um ano, a sociedade vem tentando se equilibrar sobre as próprias pernas – porém, sofrendo para descobrir como se pode passar por isso tudo sem as costumeiras válvulas de escape da vida adulta – ou, pelo menos, sem aquelas tábuas de salvação que estão no mundo “lá fora”, enquanto estamos todos, ou pelo menos os sensatos e privilegiados, confinados em casa.
Nas nossas próprias casas. Em nossa própria e devastadora companhia.
O filme A Escavação – Netflix, 2021 – conta a história de Edith Pretty, uma inglesa que contrata Basil Brown para escavar o terreno próximo à sua casa, pois acredita firmemente que existem artefatos históricos enterrados em sua propriedade. O filme é baseado em fatos reais e os objetos de imenso valor arqueológico descobertos durante a escavação podem ser vistos, atualmente, no British Museum.
A esmagadora maioria não terá, durante toda nossa vida, a oportunidade de viver uma experiência como essa. Não seremos responsáveis por entregar para a humanidade um tesouro histórico que desencavamos do nosso próprio quintal. Não deixaremos nossos nomes e fotos registrados em museus, livros de história, documentos reais e oficiais.
Acostumados que somos ao contato com os “grandes nomes” e com os “grandes feitos” da humanidade, o anonimato e a irrelevância diante do passar das décadas e dos séculos pode nos fazer sentir esmagados, ignorados, pequenos, irrelevantes. Juntando-se a isso uma pandemia, o efeito é estrangulador.
Me pergunto: quais são os grandes artefatos da nossa própria história? As grandes peças de valor incalculável e pessoal que, na dormência cotidiana, permitimos que sejam encobertas por camadas e mais camadas de cinismo, indiferença, humor histérico, pressa. Não pretendo, depois de um ano de tudo que está acontecendo ao nosso redor, propor alguma espécie de auto imersão canalha, de meditação guiada e perdida, de curso de aprimoramento que será um desperdício de tempo e dinheiro. De alguma forma, entre o simbólico e desesperado, entre o sincero e o total absurdo que a realidade nos impõe, todos os dias, eu proponho o silêncio. Profundo silêncio interior. Um silêncio tão absoluto como o que permitiu à Edith ouvir o rufar dos remos de um navio Anglo-saxão de 14 séculos atrás que jazia, em leito de terra, embaixo de seus pés.
Uma espécie de silêncio que há muito não somos capazes de emanar e de sermos engolidos por ele.
Silêncio para ouvirmos nossa própria trajetória de vida. Depois, aguçando nossa capacidade de recepção, para ouvirmos nossa particular ancestralidade morta há pouco tempo. E depois – indo mais longe na aguda ausência de barulho – para ouvir nossa história enquanto país, enquanto gente, enquanto humanidade. Há um imenso e absurdamente extenso zumbido de silêncio que nos precede e que chega até as origens do mundo e que nos urge, do vazio, a capacidade de ouvir. Foi assim que chegamos até aqui – nos braços dos mortos que, em seus navios, criaram e transportaram o mundo que recebemos. Hoje, todos eles dormem nos museus e nos guardados do mundo. E nos corações de quem ainda vive e ama aqueles que já se foram. É preciso cavar e é preciso ouvir os mortos. Só eles sabem sobre as passagens e sobre o tempo. E sobre o nosso próprio tempo.
O que eu proponho, para março de 2021, é que possamos entender o real sentido de cavarmos a terra e da imensurável relevância e urgência de ficarmos todos, absolutamente, em silêncio.